Amores de verão, por Nuno Ramos de Almeida

Há muitos anos,  li o “Falcão de Malta”, de Dashiel Hammet, e tropecei na história de um homem desaparecido. O detective Sam Spade foi encarregue de descobrir o rasto desse homem que abandonou o trabalho, uma família e a sua terra. Anos depois, encontrou-o numa outra terra, com outro emprego e uma outra família. Tinha trocado uma vida de Silva por uma vida de Sousa. Parecia estar a viver a mesma entediante existência algumas centenas de quilómetros mais à frente. No entanto, ele estava profundamente convencido que tinha valido a pena começar de novo. A realidade dessa mudança era vazia, mas graças a essa ruptura tinha parecido valer a pena.

Queixava-se que só repetia situações. Procurava mudar, mas voltava sempre a um local parecido com gente semelhante. Pretendia romper. Mas ficava-se naturalmente pelo mesmo. Percebeu tarde que no fundo o que ele queria era o momento em que tentava mudar: um instante em que estava suspenso na possibilidade de ser outra coisa qualquer.

Sejamos claros, a possibilidade de mudar, era a única coisa que o fazia suportar a vida de todos os dias. No fundo eram os amores fugazes de Verão que permitiam suportar os casamentos de Inverno e o Carnaval que permitia aturar a canga toda da moral católica. É sabido que, sem amantes, não há casamentos felizes. A sua subversão era impotente. Mais que romper com uma lógica perversa, era um mecanismo de segurança que garantia a sujeição. Mas havia momentos que achava que tudo era possível.

Mas o pior mesmo foi quando deixou der ser capaz de tentar escapar: falhar, falhar outra vez, falhar melhor. A chatice foi quando deixou de falhar. Estava irremediavelmente fodido. Condenado até ao fim a ser apenas ele.

Deus morreu, o planeta vai pelo mesmo caminho e só resta o tédio. Perto de mim há uma parede que garante: “umas sentem a excitação do tédio, outras não”. O problema é que já só resta o tédio do tédio. É preciso qualquer coisa que seja a doer. Sentir as pancadas que provem a vida. As causas altruístas têm uma vantagem egoísta: fazem-nos parecer que estamos cá por alguma razão. Reconfortado com estes pensamentos construtivos avancei calmamente pela Feira Internacional de Artesanato com o meu colete bomba: sempre odiei pessoas que compram presépios.

Nuno Ramos de Almeida, Jornalista

Foto por Tiago Figueiredo

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