Nascida do coração

Carla tem 45 anos e é educadora de infância, a mesma profissão que tinha quando, aos 26 anos, sem casa própria nem companheiro, decidiu cuidar de uma menina rejeitada pelos pais biológicos aos 17 meses.

Há quem a tenha olhado de lado e avisado de que iria perder a juventude. Carla não teve dúvidas. Só a certeza de que a filha que “nasceu do coração” é hoje um dos seus grandes orgulhos.

Férias sem volta

Sou educadora de infância na Santa Casa da Misericórdia. Um dia recebi na minha sala a Sara (irmã da Ana), com dois anos de idade, filha de uma mãe grávida que já não tinha os quatro filhos mais velhos consigo. A família era conhecida na zona e já estava assinalada como família de risco. A Sara tinha até dois dedos roídos por ratos. Viviam numa barraca, nas piores condições. Depois, em abril de 1996, nasceu a sexta criança, a Ana, e conseguimos na creche, através da Misericórdia, arranjar uma casa para a família. Enquanto a mãe das crianças estava no hospital para ter a Ana, a Sara ficou com uma auxiliar e eu fui sempre acompanhando aquela família. Fui até madrinha de batismo da Ana e, no verão de 1997, em agosto, levei-a de férias para a praia da Tocha durante 15 dias. No regresso, a mãe não quis aceitar a criança. Tinha sido agredida pelo pai das crianças e explicou que não tinha condições para ficar nem com a Sara nem com a Ana. Levei a Ana para casa, e a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) passou-me um papel para que pudesse ficar com a bebé sem problemas. A Sara ficou com outra família, que entretanto avançou para o processo de adoção. Eu preferi o processo de regulação do poder paternal. No plano burocrático, foi muito fácil.

Adaptação inicial

A Ana tinha 17 meses. Eu tinha 26 anos, era solteira, vivia com os meus pais. Ou ficava com a bebé legalmente ou ela seria entregue num lar para adoção. Não pensei duas vezes, e foi a decisão mais acertada que tomei. Tivemos de comprar tudo, adaptar o meu quarto. E, claro, existe a consciência e a preocupação de tratar de uma menor. Há as corridas para o médico, que com a Ana não foram fáceis. Ela tinha asma e foi uma criança bastante doente até aos 4/5 anos. Mas em termos afetivos foi muito fácil ficar com ela. A Ana não tinha qualquer ligação com a mãe e foi ela própria que, aos 6 anos, pediu para não fazer mais as visitas habituais à família biológica. “Mimi, não quero vir mais aqui.” Eu liguei à psicóloga que sempre a acompanhou e ela disse-me que se a Ana não queria que não a levasse mais. A mãe nem sequer lhe dava um beijo. Sim, a Ana sempre soube que não era minha filha. Achámos que era mais fácil assim, nunca achei necessário estar a mentir. E na verdade ela nunca me chamou mãe, sempre me tratou por madrinha ou Mimi. Ainda assim, a relação é perfeitamente maternal. O amor foi crescendo.

Família 29

Da parte da sociedade, senti por vezes algum olhar de lado, houve gente que achou uma estupidez aquilo que eu estava a fazer. Por ser jovem e não ter companheiro. E batalhei várias vezes no facto de, nas reuniões de pais da escola, os professores frisarem “mães, pais e encarregados de educação”. Como se fosse preciso sublinhar que existiam ali condições diferentes e que eu e a Ana não somos mãe e filha. E lembro-me de uma situação no centro de saúde em que, na vez da Ana, chamaram “família 29”. E eu não me levantei. Só à terceira vez que chamaram é que me levantei e fui dizer à responsável que iria à consulta quando chamassem pelo nome da criança e não pelo nome do processo associado à família na qual a Ana nasceu. Na verdade, só depois de a Ana e a Sara terem sido entregues à Misericórdia é que se começou a dar verdadeira atenção àquela família, que estava ali onde toda a gente sabia, numa barraca que já nem existe, numa barraca onde viviam no lixo e apagavam os cigarros no chão.

“Saiu do coração”

De resto, foi tudo um percurso normal. Houve muita ajuda da parte dos meus pais, de cuja casa só saí quando a Ana tinha 6 anos. Casei-me quando a Ana tinha 10 anos e tenho hoje mais uma filha, biológica, com 6 anos. Claro que a Matilde já me perguntou: não tens nenhuma fotografia de quando estavas grávida da Ana? E expliquei-lhe que a Ana me saiu do coração. Ela percebe que a Ana me chama Mimi e que chama Jorge ao meu marido, mas esses nomes esfumam-se na relação. E se não se souber ninguém diz que não são irmãs de sangue. A Ana é cuidadora, é atenciosa, tem um amor enorme pela irmã. Se hipotequei a minha juventude? Houve coisas que não fiz, mas o amor que ela me dava era superior a tudo o que pudesse ter perdido. Ela é para mim um orgulho enorme e tudo o que ela é recompensa-me.

Comentários

comentários