Júlia no país dos livros. Com Nuno Markl

Histórias: é o tema da edição de março de Júlia – De Bem com a Vida. E por isso estou tão bem acompanhada. Livros, porque são meus amigos de infância. Nuno Markl, porque… é dos melhores contadores de histórias que conheço.
Nuno, vamos a isto, conta-me histórias…

O adolescente que preferia ficar no quarto a desenhar em vez de ir jogar futebol. O humorista que inventou a famosa expressão “lets luque at a treila” sem querer. O contador de histórias que também é romântico. O pai que cultivou a paixão por Charlie e a Fábrica de Chocolate. E que não acha graça nenhuma “à agressividade” dos comentários que invadem as redes sociais. Nuno Markl é um cromo. E é maravilhoso tê-lo na minha caderneta onde só guardo os melhores!

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À conversa com o “cromo” Nuno Markl

Na adolescência, achavas-te um cromo “diferente”. Ou seja, em vez de jogares futebol, preferias ficar no quatro a desenhar… Podes partilhar um pouco mais sobre essa fase da tua vida?

Acho que a minha inépcia para o desporto vem do dia infeliz, na segunda ou terceira classe, em que me esqueci dos calções de ginástica. Isto parece piada, mas é verdade. Nesse dia, na escola, tomei uma decisão que mudou o rumo da minha vida: achei que, como os calções da escola eram brancos e como as minhas cuecas eram brancas, conseguia ir de cuecas para a ginástica, na esperança de que o meu professor e os meus colegas achassem que, simplesmente, os meus calções eram mais curtos que os dos outros. A humilhação foi tal que é como se, desde essa altura, eu ande pelo mundo em cuecas brancas. Isso foi um passo decisivo para eu começar a achar mais interessante estar no chão do meu quarto a desenhar.

“A Caderneta de Cromos é das coisas mais verdadeiras que fiz na vida”, disseste numa entrevista. É um momento marcante na tua carreira, certo?

É, porque é uma espécie de enciclopédia pessoal emocional. Não é uma Wikipédia dos anos 70 e 80, é a maneira como todos aqueles objetos, brinquedos, comidas, livros, filmes, programas de TV, me construíram. E não só a mim − a Caderneta partia do particular para chegar ao universal. As minhas experiências encontravam eco nos meus colegas, no estúdio, e nas pessoas que nos ouviam. Por isso rapidamente se tornou numa espécie de convívio à volta da fogueira. Às tantas já não era só eu a surpreender os ouvintes desenterrando memórias, eram os ouvintes a surpreender-me a mim com coisas das quais eu já não me lembrava.

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É só rir… mas fazer rir dá muito trabalho!

Quando é que te apercebeste de que és um excelente contador de histórias?

Eu percebi que tinha esse vício ainda na escola, quando uma das melhores missões que me podiam ser atribuídas era escrever redações de tema livre, em Português. À conta disso, em 1986, uma professora emprestou-me Os Contos do Gin Tonic, do Mário Henrique Leiria, que foi uma espécie de epifania. Acho que nessa altura decidi que, de alguma maneira, teria de fazer vida a contar histórias. Fosse a desenhá-las (porque também gosto de rabiscar), ou a escrevê-las.

Fizeste textos para o Herman, para a personagem Lauro Dérmio (o famoso crítico de cinema). Aliás, a expressão do trailer foi inventada por ti, não foi?  Sempre gostaste muito de cinema, por isso pergunto-te: costumas rever filmes? Há algum que tenhas visto várias vezes? Para 2018, quais são as grandes estreias? E filmes exibidos, uma grande desilusão?

 Inventei o “lets luque at a treila” sem querer, sem intenção de fazer ali um bordão. Pus aquilo no primeiro sketch do Lauro Dérmio que escrevi como piada por causa da maneira peculiar como o grande Lauro António falava inglês. Eu era o encarregado do Lauro Dérmio por causa do meu amor pelo cinema. E sim, revejo alguns. Ainda recentemente revi o Goodfellas, do Martin Scorsese, duas vezes. Que filme absolutamente perfeito do primeiro ao último minuto! Para 2018, estou doido para ver o novo do Wes Anderson, Isle of Dogs. Não há um filme do Wes Anderson que eu não adore. Quanto a desilusões, a maior que tive recentemente foi A Forma da Água, do Guillermo del Toro. Quando leio pessoas dizerem que é o melhor filme dele, fico arrepiado, sobretudo ao lembrar-me de que ele fez filmes realmente bons como o Nas Costas do Diabo ou O Labirinto do Fauno. Acho A Forma da Água absolutamente calculista e não sincero. Os meus favoritos dos Óscares foram o Três Cartazes à Beira da Estrada, o Lady Bird, o Chama-me Pelo Teu Nome e o The Florida Project. Todos eles têm a alma e a sinceridade que falta ao A Forma da Água.

Qual foi a história mais hilariante que já contaste e/ou ouviste?

Ao fazer todos os dias O Homem Que Mordeu o Cão, sou surpreendido por histórias reais fenomenais. Mas uma das minhas favoritas de sempre é a clássica da pequena vila piscatória americana a cuja costa deu uma baleia morta. As autoridades decidiram encher o cadáver da baleia com dinamite e só se aperceberam do erro quando detonaram a dinamite e postas gigantescas de baleia voaram por toda a vila, destruindo janelas, carros, e deixando algumas pessoas com um cheiro a peixe que ainda hoje se deve manter. E isto aconteceu nos anos 70!

 

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Nuno Markl… um excelente contador de histórias!

 

Excelente contador de histórias: o que é que, na tua perspetiva, terá contribuído para que sejas uma pessoa tão criativa?

Não sei se é criatividade, se é incontinência. Mas também é verdade que, se é para ser incontinente, que seja de histórias e ideias. Tenho de estar sempre a tomar nota de coisas. E tenho consciência de que só para aí 5% delas é que poderão ter potencial de resultar em coisas interessantes. Mas isso vem do meu mundo interior, dos tempos em que preferia ficar sozinho a inventar coisas do que a jogar à bola.

“Que nunca se acabe a comunicação entre quem ama. Mesmo quando o amor acaba. Ou se transforma noutra coisa.” Além das histórias de humor, onde é que ficam as histórias de amor? Nuno Markl também é um romântico?

Sou, o meu problema é que também, dado o meu caos, desorganização, distração e tendência para viver muito dentro de mim mesmo, sou uma pessoa bastante difícil de se viver com. Mas quero acreditar que perceber isso seja capaz de já ser um bom passo para tentar melhorar!

Também contavas histórias ao teu filho, para ele adormecer? Inventadas por ti?

Inventei algumas, mas geralmente aproveito para lhe dar a descobrir autores que adoro. Ele agora ficou fã do Roald Dahl à conta do Charlie e a Fábrica de Chocolate e do Matilda. Também lhe dei a descobrir o Calvin and Hobbes e a maneira instantânea como ele se identificou com o Calvin, foi maravilhoso de ver.

Trabalhas com humoristas como Bruno Nogueira e Ricardo Araújo Pereira. O teu comentário a quem diz/pensa que o teu trabalho deve ser uma permanente animação?

 Há um lado de animação quando estamos uns com os outros. Somos amigos, gostamos de nos fazer rir uns aos outros, por isso um projeto como a websérie Uma Nêspera no Cu foi uma festa de fazer, com o Bruno e o Filipe Melo. O que às vezes custa mais (embora dê gozo) é a parte de criar sozinho. Sobretudo quando são coisas por encomenda.

O que é que não tem graça nenhuma? 

A estupidez e a agressividade que vemos em zonas de comentários dos sites dos jornais e em alguns comentários nas redes sociais. Dá para gozar até certo ponto, depois é só uma montra deprimente sobre o pior que a nossa espécie tem, e que – levado a extremos – resulta em guerras, fundamentalismos, etc. Há dias em que olho para isso como bom material para comédia, mas noutros olho para isso com vontade de voltar para o chão do meu quarto da infância a desenhar bonecos.

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