Luxo é… acordar com saúde, João da Silva, 42 anos, três situações oncológica

João da Silva tem 42 anos e três vitórias contra o cancro. Conta-nos como vivia em piloto-automático antes da doença e como passou a valorizar cada minuto do seu tempo.

João, que faz agora hemodiálise três vezes por semana, celebra todos os dias o facto de estar vivo e de ter alcançado aquela ‘pequena meta’ de sobreviver até o seu filho atingir uma idade que lhe permitisse ter memória do pai.

O objetivo poderá ter feito a diferença na luta. E o jornalista que trabalhava até tarde pela ambição de bens materiais conta-nos hoje que, luxo é…. ter saúde!


A minha definição de luxo é, antes de tudo o resto, usufruir de uma saúde plena. Mas num sentido mais abrangente, luxo para mim é ter sempre tempo para dar atenção às pessoas que amo e que estimo. Não vale a pena enunciar quem são, mas é óbvio que o meu filho, a namorada e alguns familiares e amigos têm prioridade na forma como distribuo o meu tempo. Contudo, é também um luxo ter diariamente tempo para mim próprio (para os meus momentos de silêncio/introspeção/reflexão e para o exercício físico) e ainda para o que mais me apaixona, a escrita. O meu trabalho como jornalista numa revista de automóveis toma-me bastante tempo e como faço hemodiálise três vezes por semana durante quatro horas, considero um luxo conseguir ter algum tempo para os meus projetos pessoais de escrita. Aliás, vejo as quatro horas de tratamento também como um luxo, pois poucas pessoas podem gabar-se de usufruir de quatro horas três vezes por semana exclusivamente para cuidar da sua saúde, ler, escrever e ver filmes.

 

O tempo é a coisa mais preciosa que podemos oferecer a alguém, ou não fosse o tempo o nosso bem mais precioso. O tempo que temos é o tempo que temos, não podemos comprar ou pedir emprestado mais tempo para fazer isto ou aquilo. Mas mais importante do que a quantidade de tempo será o que fazemos com ele. Ora, isto leva-nos a uma questão fundamental: estaremos a fazer tudo o que podemos para ser felizes nos pequenos pedaços de vida que escapam a cada segundo? Confesso que nem sempre o faço. Na verdade, nenhum de nós o fará o tempo todo, seja por comodismo, distração ou falta de coragem, mas poder escolher como o podemos ocupar é, a seguir à saúde, o nosso luxo mais valioso.

João ‘voltou’ diferente três vezes 

Quando passamos por uma experiência limite, que envolve risco de vida, voltamos diferentes. Eu voltei diferente três vezes, o correspondente ao número de situações oncológicas com que tive que lidar. Hoje vivo o dia a dia. É um lugar-comum dizê-lo, mas vivê-lo é algo de bem diferente. Para mim, todos os dias são uma bênção! Todos os dias são importantes! Todos os dias celebro o facto de estar vivo! Todos os dias são dias de fazer coisas e de estar com as pessoas de quem gosto. Não imponho regras sobre se é dia de ir jantar fora ou ao cinema só por ser terça ou quarta-feira. Vou e pronto! Posso dar um exemplo: antes da doença trabalhava até tarde. Chegava a casa e pouco tempo tinha para o miúdo. Depois da doença, um dia ele pediu-me ao telefone para jogar à bola com ele. Eu estava a trabalhar e disse que não podia. Quando desliguei o telefone fiquei a remoer naquilo e a caminho de casa decidi que ia mudar de vida. As crianças pequenas (até por volta dos 6 anos) não conseguem ter a capacidade de programar as atividades no tempo como os adultos. Para elas tudo acontece hoje. O amanhã é longe, é o infinito. Não conseguem perceber que é no fim de semana que há tempo para as atividades lúdicas ou para a diversão. Nesse dia deixei de pensar assim. Agora vivo como uma criança. Se há vontade hoje, faz-se hoje. Há exceções de agenda e de logística, claro.

Por fim, valorizo menos os bens materiais. Sendo certo que alguns são importantes para o nosso conforto e bem-estar, mas o mais importante é mesmo valorizarmos o que temos: saúde e pessoas que amamos e que nos amam ao nosso lado. Ter comida e um teto também é importante, claro, e cada vez mais um luxo…

Aceitar, aceitar, aceitar


Há tratamentos que curam algumas pessoas, mas os mesmos tratamentos podem não curar outros. O que tenho a certeza que pode fazer diferença é a mente de cada um. Há um efeito placebo nos nossos pensamentos que acredito podem fazer a diferença. No meu caso, atípico como o professor Passos Coelho referiu, acredito que aquilo que pensei, tentando sempre fazer uma vida normal, aceitando a doença, sem revolta, e tentando progredir todos os dias um bocadinho, acabou por ajudar a ultrapassar este problema. Gostaria de acrescentar que sigo a mesma receita hoje em dia, com a hemodiálise. Faço uma vida sem limitações, trabalhando e treinando quatro a cinco vezes por semana, por exemplo. Eu aceito o que vem e organizo-me.

 

“Fica comigo João, fica comigo…”

O momento que refere aconteceu pouco depois de ter ido de urgência para o IPO. Estava muito fraco e a situação foi crítica. Curiosamente, ficou gravada na minha cabeça como um filme que ainda hoje é muito fácil para mim recordar. Estava literalmente a despedir-me de um estado de consciência quando, lá muito ao fundo, ouvi uma voz que repetia «fica comigo João, fica comigo…». Aos poucos, a voz foi-se tornando cada vez mais nítida e eu retomei a consciência plena. Noutras situações muito complicadas que vivi nesse período, não terei ouvido exatamente a mesma frase, mas sentia que a minha família fazia muita força para que eu ficasse com eles. Essa ideia de «ficar por cá» estava sempre presente no meu pensamento, sobretudo em relação ao meu filho, que eu queria muito que tivesse o pai presente durante o seu crescimento.

A esse respeito posso até contar uma pequena história que consta do livro: a certa altura ocorreu-me que o Joãozinho, o meu filho, que tinha um ano e meio quando fiquei doente, dificilmente teria memória de mim se eu morresse. Isto porque as minhas primeiras memórias de infância rondam os cinco ou seis anos. Vai daí, estipulei para mim próprio uma meta: eu teria de ficar vivo até ele atingir essa idade, para que pelo menos pudesse ter memória do pai. Acredito que ter um objetivo fez toda a diferença. Neste momento, ele já tem 11 anos e estou certo que nunca se esquecerá de mim. Espero que pelas melhores razões!

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