Tininha, rendeira cega

Nonagenária cega faz a sua primeira exposição

Clementina da Silva Vieira ou apenas Tininha, como é conhecida e tratada no Lar da Misericórdia de Porto de Mós, concelho de Porto de Mós, está surpreendida. “Aos 90 anos, o que havia de me acontecer”, diz-nos com aquele bom humor que lhe é característico e que foi preservando desde os tempos de menina.

Acontece que a mostra que está em exibição desde sexta-feira no Museu Municipal de Porto de Mós é da autoria de Tininha. Aos 90 anos, expõe pela primeira vez o seu talento, autênticas obras de arte que foi tecendo, nos últimos anos, cega de ambos os olhos, mas sem nunca perder o rigor e a ousadia de sempre.

“Ninguém diria que as peças expostas, desde naperons, chapéus, sacos para pão, são feitos por alguém que não vê”, conta-nos Quirina Ladeiro, a Técnica Superior de Educação Social, habituada a adaptar as atividades do Lar às preferências apuradas desta utente. “A Tininha está sempre disponível para as atividades que lhe propomos, mas ao mesmo tempo é seletiva. Iniciativas, desde que sejam intelectualmente estimulantes”. Posto isto, a Técnica implementa ditados com palavras difíceis – palavras difíceis é uma exigência de Tininha – e o resultado é quase sempre: zero erros.

A sua caligrafia está na mesma linha da do crochet: aprimorada, delicada e formosa. Tininha está surpreendida aos 90 anos. E nós estamos surpreendidos com a nonagenária, que com a 4ª classe no currículo, persiste em tirar talentos da cartola.

Aos quatro anos, a tia levou-a de Porto de Mós para Lisboa. Os pais trabalhavam muito, a mãe era cozinheira, e as possibilidades de cuidar de três filhos eram poucas. Tininha viveu então com a tia, que além de telefonista, bordava vestidos e robes para as senhoras da alta, da capital. Enquanto costurava, mantinha Tininha entretida com novelos e a “fazer buracos” na renda. Passavam horas nesta lengalenga. Quando chegou o momento da quarta-classe, a mãe entendeu que a escola de Porto de Mós oferecia melhores condições: na altura, o estabelecimento frequentado por Tininha, em Lisboa, tinha apenas uma sala e um professor para as crianças de todos os ciclos, do 1º ao 4º. Em Porto de Mós, cada ciclo tinha direito a uma sala e ao respetivo professor, mas ao contrário do que já acontecia na cidade, rapazes e raparigas não se misturavam em aula.

Completada a quarta-classe, Tininha recorda que foi desaconselhada pelo médico a deixar de estudar. Motivo: miopia. Juntou-se, por isso, aos pais na labuta diária e, enquanto os progenitores foram vivos, deu o seu melhor no negócio de família. Dedicou-se à pensão, café e taberna.

Mais tarde, assumiu funções administrativas, durante cerca de vinte anos, na Cooperativa de frutas da terra. E apesar da vista, teimosa em desaparecer, continuava a bordar. Já tinha 60 anos quando foi operada, por indicação de um médico de referência que visitou em Coimbra. A cirurgia proporcionou-lhe cinco anos de visão plena. “Um dia tive uma constipação tão forte que tomei um antibiótico, prescrito pela médica de família. Os médicos entenderam depois que terá sido esse antibiótico que voltou a afetar-me a visão”, recorda.

Quando cegou completamente e entendeu que precisava de apoio (os seus irmãos já morreram e Tininha, apesar de ter tido namorados, nunca chegou a ter “a sorte” de casar e constituir família), procurou um Lar. “A maioria das pessoas entende que o Lar é a última solução. Mas há vida no Lar”, refere Quirina.

Tininha é, porém, um caso à parte, admite a técnica. “Para esta senhora não há barreiras”. Quando cegou, Tininha voltou a pegar nas agulhas e disse: “vamos lá ver se sou capaz”. E de repente, começaram a bater-lhe à porta da memória as imagens de bordados das revistas de onde costumava copiar rendas e desenhos. Vieram os malmequeres, as mandalas e tantos outros padrões coloridos que lhe têm permitido dar continuidade às habilidades rítmicas do crochet. Os colaboradores do Lar deliciam-se com as suas obras – há dias, foi a vez da Enfermeira ser mimada com uma toalha de quase três metros, atualmente em exibição no Museu de Porto de Mós. Uma exposição que também nasce de um presente: quando a diretora do Museu visitou o Lar, Tininha ofereceu-lhe as mós de um moinho em renda. A diretora, admirada com a precisão da peça, delicadamente bordada por uma nonagenária cega, ligou dias depois, com o convite. Irrecusável.

Tininha está feliz: “não posso ver os meus trabalhos mas há outros que podem vê-los no Museu”. Aos 90 anos. Porque nunca é tarde: “apesar da idade e da cegueira, há coisas que nunca mudaram. A Tininha tem as gavetas mais bem arrumadas que eu já vi. A Tininha, quando completou 90 anos em Julho e preparámos uma pequena celebração, subiu ao quarto para trocar de sapatos, de forma a que pudessem condizer com a blusa”. Tininha é uma mulher à frente do seu tempo, garante, e as suas agulhas tecem com a força do seu coração.

A exposição pode ser visitada até dia 15 de Outubro, no Museu Municipal de Porto de Mós.

Foto: Autarquia Porto de Mós

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