A Maria do melhor abraço do mundo

Ana estava “só a fazer tudo no tempo e no ritmo certos”, mas às 27 semanas de gravidez os médicos disseram-lhe que seria diferente. Dezasseis anos depois de uma vida que se dizia acabada em 48 horas, Ana Rebelo conta a Júlia – De Bem com a Vida − e a todos os que a quiserem ler em A mãe da Maria − a história da sua família. Uma história de dedicação, de persistência e, acima de tudo, de inclusão.

Stop

Tinha vindo de três semanas de férias do Algarve, ainda trazia em mim o gosto da praia. Estava grávida de 27 semanas e fui fazer um exame de rotina. A médica ficou imediatamente alerta. O bebé tinha parado de crescer. Mal saí do consultório, liguei à minha cunhada, que era médica, e muito rapidamente comecei uma bateria de exames. No teste da amniocentese, descobriu-se que a Maria tinha uma deficiência genética. A reação? Foi aquela que julgo que qualquer um teria. Acho que naquele momento a minha vida entrou completamente em stop, parou tudo. Eu queria que aquilo andasse para a frente e parou tudo. Depois disso, é a loucura de querer saber mais. De todos os dias fazer exames, de todos os dias ir a outro médico. Eu acho que corri quase todos os consultórios de Lisboa para tentar saber qual era o problema que a Maria tinha. Não havia igual no mundo! Por muito que procurasse, não ia adiantar de muita coisa. Passou-me de tudo pela cabeça. Foi-me proposto ir a Londres abortar, deram-me uma receita de comprimidos para eu fazer. Foi-me proposto tudo. Eu, por alguma razão, não avancei. Quis ter a Maria!

O lençol verde e Elton John

Eu não vi a Maria. Ela quando nasceu tinha um prognóstico de 48 horas de vida e os médicos não queriam que eu criasse um laço. Eu tinha 25 anos e era o primeiro filho. Levantaram um lençol verde e puseram uma música do Elton John, ainda me lembro. Para eu não ver nem ouvir, para não criar aquela ligação imediata. Só umas horas depois, como viram que não morreu logo, é que me vieram mostrar uma fotografia. Na altura, fiquei na sala das pessoas que têm um aborto e senti-me estranha, estava muito triste e era a única que tinha um bebé vivo. Senti logo ali um abanão. Como é que é possível eu não a ir ver e ela estar viva?! Eles não queriam, mas eu fui! Foi uma batalha muito grande. Tinha muitos pontos, foi um parto muito difícil, então foi um caminho muito longo desde a sala dos abortos até à janela dos cuidados intensivos. Lá cheguei, agarrada às paredes. E descobri que era a única mãe que não sabia quem era a filha.

Esperança num amontoado de fios

Antes de nascer, a Maria tinha um prognóstico de coração esquerdo hipoplásico, ou seja, a maioria das estruturas do lado esquerdo do coração eram muito pequenas e pouco desenvolvidas para fornecer o fluxo de sangue suficiente para as necessidades do seu corpo. Isso significava que teria cerca de 48 horas de vida. A juntar à cromossomopatia, era um panorama terrível para os médicos. Quando ela saiu, o prognóstico reverteu-se e ela ficou mais estável, sendo que ainda estava numa situação complicada. Quando vi a Maria, ela era um amontoado de fios, uma coisinha mínima cheia de fios à volta e máquinas a apitar. Mas já não olhei para ela com o terror que estávamos a viver, olhei com uma esperança.

Entre hospitais

Logo a seguir, a Maria foi transferida para Santa Marta. Os médicos não queriam que saísse da maca. Mas assinei um termo de responsabilidade e fui atrás dela. A Maria só saiu do hospital já com um ano e meio. Com um mês, foi operada ao coração. Depois ao estômago. Quando finalmente veio para casa, estava a mudar-lhe uma fralda e descobri que ela tinha um tumor num olho. Foi para a Suíça para tirar o tumor e depois quimioterapia e radioterapia. Felizmente não deixam um bebé que está a morrer ir para casa. Esse foi o panorama da Maria, que esteve literalmente vários meses em cuidados paliativos porque os médicos não sabiam o que fazer e não queriam apostar nela. Não há caso nenhum igual e eles fazem sempre a gestão entre riscos e benefícios da ação. Portanto, tive de tomar às vezes algumas atitudes um bocadinho mais bruscas para que ela fosse tratada. Aos cinco meses, a Maria pesava dois quilos e meio, mais ou menos o peso com que nasceu. Comia por uma sonda e estava sempre a bolçar. Os médicos queriam que viesse para casa assim, com uma sonda. Ensinaram-me como é que aquilo se fazia e disseram-me que tinha de acertar sempre no canal, porque se acertasse fora do canal matava a Maria. ‘Fura um dos pulmões e mata.’ E eu disse então que não ia levar a minha filha assim. Além disso, já sabia que era possível colocar um tubo diretamente ao estômago e então tive que entrar uma vez numa reunião de médicos e enfermeiros e dizer-lhes que, se não tratassem a minha filha como tinham que tratar, eu abandoná-la-ia no hospital e nunca mais lá punha os pés. Foi a pior coisa que fiz na minha vida, mas resultou! Dez dias depois, a minha filha estava na sala de operações e ao fim de dois meses já tinha o dobro do peso. Nós somos umas leoas e eu estava bem aconselhada − disseram-me que o maior pânico dos médicos é o de que os pais abandonem as crianças.

A força que a Maria tem

Quando ela, com cerca de 10 meses de idade, fazia quimioterapia, descobri que estava grávida do Tomás. Não lhe podia tocar e sentia-me impotente, não podia ajudar. E isso é muito complicado. Nós queremos estar perto dos nossos filhos quando eles estão em sofrimento. E houve um dia em que ela estava no IPO, numa sala, sentada na cadeirinha dela. Eu longe, e só de a ver naquele sofrimento com três pelos, toda cinzenta, comecei a chorar. Não consegui aguentar. Sobretudo grávida, em que temos as hormonas encostadas aos olhos a empurrar lágrimas. Ela esticou a mão, agarrou-me e fez o maior sorriso do mundo. Eu pensei: o que é isto? Eu sou a mãe, não estou a fazer quimioterapia. Como é que eu estou a chorar, e ela, que está a levar com aquilo, tem esta capacidade de me reconfortar? Isso, para mim, marcou-me para a vida. A partir daí, a minha cabeça começou a mudar. Se ela tem força, eu tenho que ter muito mais do que ela. Eu fui mãe com a Maria!

A mãe da Maria

No livro, falo na primeira pessoa sobre o que foram estes 16 anos. No blogue, quero ativar a inclusão de crianças com deficiência em Portugal. Ainda existe muito o estigma do coitadinho e é preciso desmistificar a deficiência, ver que não é nada de difícil. Todos nós somos diferentes e todos nós temos que aceitar que a sociedade seja diversa. Ao expor a vida da Maria e a simplicidade e a felicidade dela, eu acho que ajudo as pessoas a perceberem que isto não é um bicho de sete cabeças. Todos temos as nossas necessidades, e as dela são só diferentes das dos irmãos. Eventualmente tem uma cabeça de dois anos com 16, mas emocionalmente poderá estar muito acima dos irmãos. Portanto, temos que nos adaptar a esta diversidade, e isso funciona dentro da nossa família. Não somos especiais, a Maria não é especial, eu não sou especial. Somos uma família comum, e é isso que eu queria que a sociedade entendesse.

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