“Mas será que elas são assim tão ‘malucas’?”, Marta Ramalho, autora do documentário sobre mulheres com doença mental

Quase um quinto da população portuguesa sofre com doenças mentais, o que segundo o recente Relatório Health at a Glance 2018, posiciona-nos em quinto lugar da tabela de países da União Europeia com mais doenças mentais.

Os problemas mais comuns são a depressão e a ansiedade (cada um afeta 6% da população portuguesa), seguindo-se os problemas relacionados com o consumo de álcool e drogas (2%) e a doença bipolar e esquizofrenia (2%).

Os números são atuais (estima-se que 18,4% dos portugueses sofrem deste tipo perturbações) e conhecidos, graças à partilha da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Falta (sempre) conhecer as histórias, os rostos, e também os mitos que tantas vezes estão associados aos transtornos mentais. No relatório, lê-se que “em muitos países há ainda um grande estigma (de que é melhor não falar de doenças mentais)”. E foi precisamente o estigma que começou por aproximar Marta Ramalho de um grupo de seis mulheres com doenças mentais e acompanhadas na Casa de Saúde da Idanha, um centro que presta cuidados em saúde mental e psiquiatria.

Há cerca de oito anos, a mãe de Marta foi internada numa unidade de cuidados paliativos, junto à Casa de Saúde da Idanha. Numa das visitas regulares à unidade, Marta saiu por momentos do edifício para comprar algo na cafetaria e perdeu a noção do tempo. O que esperava ser um lanche rápido transformou-se em três horas de demora, com a atenção presa nas mulheres com doenças mentais com quem se cruzou no caminho. Quem eram estas mulheres? Qual era a sua história? O enredo? Como viveriam?

Aquelas três horas de espetadora silenciosa e atenta cravaram-se como que à pele. E quando Marta, 42 anos, decidiu que estava na altura de recuperar um sonho antigo (a antropologia) e voltar a estudar, voltou a “bater à porta” da instituição. E, novidade bem acolhida, o centro aceitou contribuir para o seu documentário, aquela que seria a tese de final de curso com a vitória de 17 valores!

“Estou há muito anos a trabalhar em ficção e decidi que era altura de estudar a realidade”, recorda a profissional de televisão.

Durante um ano, a câmara de Marta entrou na vida de seis mulheres com doenças mentais. Um apartamento junto à Casa de Saúde da Idanha e onde estas mulheres gozam de um “estatuto” de certa autonomia. Ou seja, conta-nos Marta, são mulheres entre os 46 e os 70 anos, que embora possuam psicoses graves (esquizofrenia, etc), mantêm uma estabilidade que permite viverem fora da Casa de Saúde. Frequentam os ateliers da Casa (de Saúde da Idanha), e sobretudo, cumprem as rotinas que lhes são transmitidas: a toma dos medicamentos, as compras no supermercado, a arrumação do apartamento à vez. A rotina é fundamental no equilíbrio da casa. “Não há aqui espaço para o espontâneo”. E a “normalidade” depende de todas.

“Basta uma das mulheres do grupo desestabilizar para afetar toda a ordem na casa”, conta Marta, recordando o momento em que uma das mulheres sofreu uma recaída e teve que voltar para a Casa de Saúde. “Aquele apartamento é um sinal de saúde. Aquelas mulheres sabem que voltar à Casa não é saudável. E assim cria-se uma espécie de hierarquia entre elas, baseada nos eventuais níveis de saúde”, explica.

Estas mulheres também sabem do estigma que existe na sociedade sobre elas. Mas, curioso, “conseguem uma coesão tão forte entre elas, na casa, que conseguem ultrapassar isso”.

Marta recorda uma expressão comum na casa: “Quando eu era gente”. É desta forma que fazem alusão aos tempos em que não havia doença, antes dos traumas ou dos episódios que alguns casos e circunstâncias possam ter desencadeado os atuais transtornos.

Marta deixou de se ocupar do estigma para se debruçar sobre estas gentes, que “ao contrário do que muitas pessoas julgam, não são agressivas”. São mulheres licenciadas, com profissões como professora, com família (nem sempre presente) e com histórias de perdas “que podiam ser as nossas”. “Mas será que elas são assim tão ‘malucas’?, pergunto.”

Têm sentido de humor, falam de política, e questionam. “Durante cinco meses nunca lhes mostrei qualquer filmagem. Um dia, perguntaram-me o que estava ali a fazer. Expliquei-lhes e foram as primeiras a ver as imagens.”

Porque… “Uma pessoa vale mais que o universo inteiro”. A citação que se lê na Casa de Saúde da Idanha foi a primeira frase que Marta dirigiu, em voz alta, ao júri da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa), antes de apresentar há meses o seu documentário (de 18 minutos).

Há ainda muito a fazer: educação nas escolas, por exemplo, uma vez que os primeiros sinais das perturbações mentais começam na adolescência. “E o limiar entre a saúde e a não saúde é afinal muito ténue”. Este é um contributo. A mãe de Marta estaria hoje orgulhosa.

 

 

 

 

 

 

 

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