“Por questões de educação, não se aceita facilmente que uma mulher seja mais rápida no rali”, Elisabete Jacinto

Elisabete Jacinto fez história ao vencer pela primeira vez, no passado dia 12 de Janeiro, o Africa Eco Race ao volante de um camião.

Foi a primeira mulher a vencer a corrida na sua categoria e o primeiro português a alcançar este sonho numa longa maratona de todo-o-terreno com as características do Africa Race.

 

Das suas aventuras e conquistas resulta um livro de fotografias, que relatam algumas das suas experiências em todo-o-terreno. A totalidade das vendas do “100 imagens. Algumas histórias” revertem a favor da Associação Humanidade, instituição Particular de Solidariedade Social que apoia jovens mães em situações de risco.

A primeira mulher piloto portuguesa a ganhar a África Eco Race, ao volante de um camião. O que significa esta vitória para si, Elisabete?

Esta vitória é a recompensa por todo o trabalho realizado… que foi muito. É a prova de que os sonhos, mesmos aqueles que parecem excessivamente ambiciosos, podem realizar-se. É uma conquista pessoal enorme. A prova de que o desporto vale a pena… E que os estereótipos são uma barreira… que pode e deve ser ultrapassada.

Pode partilhar connosco alguns dos momentos mais desafiantes desta prova?

A condução rápida mas segura… quando é feita ao limite é um desafio enorme. A travessia das dunas… porque nunca se sabe o que está do outro lado e às vezes temos surpresas muito desagradáveis. O lidar com outras pessoas em situação de stress é dos maiores desafios.

Quando se apercebeu de que, efetivamente, poderia vencer?

Percebi que poderia vencer na primeira etapa. Sabia que tinha atingido um bom nível de condução já há algum tempo, mas, efetivamente, só percebi que iria vencer na última etapa, depois de ultrapassar a zona de dunas… O deserto é muito traiçoeiro e nunca temos a certeza do que vai acontecer a seguir.  É possível perder-se horas na areia mole da Mauritânia… por isso, a minha vantagem em termos de tempo, não era garantia de nada!

Numa entrevista, diz que “se há coisa que chateia os meus adversários é ficar à frente deles, por ser mulher”. Conte-nos lá isso melhor 😊

Nas corridas todos vão lutar para ter uma boa classificação. Só se aceita bem os que ficam à nossa frente quando se reconhece que têm mais qualidade do que nós.  Por isso (colocando-me na pele dos homens), não se espera nunca que seja uma mulher, que conduz um camião de série, a ficar à frente… principalmente quando se conduz um camião protótipo… construído para competir. Isto é compreensível. É o estereótipo a atuar. A educação que tivemos não nos deixa aceitar facilmente que uma mulher que, teoricamente, não deveria saber conduzir… seja mais rápida e saiba gerir melhor as dificuldades do rali.

Pode contar-nos uma situação especifica em que tenha sentido a discriminação pelo facto de ser mulher? 

Discriminação é uma palavra forte. Eu não a uso nunca. Eu diria antes que vivemos numa sociedade onde as mulheres podem ter acesso a tudo o que quiserem se tiverem capacidade para enfrentar os inúmeros obstáculos que lhes vão surgindo pelo caminhos, que serão muitos… se tiverem uma grande capacidade de trabalho, se forem persistentes, se tiverem bem claro onde querem chegar, se forem inteligentes e usarem o bom senso como ferramenta principal.

Enfrentam-se estes obstáculos todos os dias, pequenas coisas, subtis, que não matam mas vão chateando, desmotivando…

Contou que “o facto de a minha educação ter sido assim, carregou-me de medos e inseguranças”. Pode explicar-nos melhor?

A nossa educação reforça a fragilidade e a dependência das mulheres. Incentiva-se os rapazes a tomarem iniciativa, a serem arrojados, a aprenderem a enfrentar situações difíceis. Incentivam-se as raparigas a serem recatadas, a terem medo de tudo… a serem dependentes. Quando chegamos a adultas, perante uma situação de perigo, as mulheres gritam. Os homens agem.

Com isto quero dizer que a nossa educação condiciona muito a forma com enfrentamos a vida. No meu caso particular, o desporto permitiu-me perceber que os meus medos, limitativos, poderiam ser ultrapassados… e isso foi muito bom.

Tudo começou com… a compra de uma revista de moto, certo? Pode contar-nos como mudou de mota para camião e algumas reações mais curiosas que teve quando partilhou esta “mudança”?

A ideia de tirar a carta de camião surgiu quando comecei a pôr a hipótese de abandonar a competição de moto. O facto de ter terminado o Dakar de moto, que foi algo extremamente difícil, permitiu-me ter aquela convicção de que poderia fazer na vida tudo o que quisesse. Por que não de camião?! Fiz um sucesso quando disse que ia participar no Dakar de camião. A sensação de frustração foi quando percebi que ninguém acreditava que fosse eu a conduzir.  Aqui está um exemplo dos tais obstáculos subtis de que falava há pouco… o de não conseguirmos ter credibilidade por parte dos outros.

Na estrada, do dia a dia, já teve situações curiosas por exemplo na estrada quando a reconhecem?

Se vou de carro ou de moto ninguém me reconhece, naturalmente. Se for de camião, como está bem identificado, as pessoas passam, abrandam, tiram fotos, buzinam, fazem sinais de luzes.

Estas suas provas deram origem ao livro ”100 imagens. Algumas histórias”. Pode destacar-nos (sei que é difícil 😊) duas imagens do livro que mais a comoveram e contar-nos brevemente a história?  

Na página 89, está a foto relativa à vitória no rali Oilibya du Maroc, uma prova bastante disputada entre os camiões e na qual fui a primeira classificada. A disputa pelo primeiro lugar fez-se até à ultima etapa, onde, na travessia das últimas dunas, antes de chegar à meta, acabei por “me” encostar a um camião que estava encravado na areia e terminei o rali com uma mossa na caixa de carga.

"Por questões de educação, não se aceita facilmente que uma mulher seja mais rápida no rali", Elisabete Jacinto Rali-de-Marrocos-2013-002

Elisabete Jacinto,  “100 imagens. Algumas histórias”

A foto da página 20 representa a situação resultante do momento em que, pela primeira vez, dei comigo à frente da equipa de camião mais competitiva do rali África Eco Race. A adrenalina subiu de tal forma que, quando cheguei a uma zona estreita, não abrandei o suficiente para ter tempo de girar o volante o número de vezes necessárias para circular bem entre os tufos de ervas. Acabei por subir um deles e o camião desequilibrou e caiu para o lado.

"Por questões de educação, não se aceita facilmente que uma mulher seja mais rápida no rali", Elisabete Jacinto Africa-Race-2013-002

Elisabete Jacinto

54 anos – como se sente aos 54 anos? E com a vitória mais importante da carreira? O que lhe trouxe a idade?

Adivinhe a resposta!

… a prova disso é o resultado desta prova! A ideia de que a prática do desporto é para jovens é um estereótipo que também já não faz sentido nos tempos que correm. A idade trouxe-me conhecimento, confiança e à vontade. Uma melhor capacidade de lidar com as dificuldades físicas e psicológicas… ideias mais claras!

A quem dedica esta vitória?

À minha equipa que trabalhou bastante… e à Bio-Ritmo®, naturalmente.

O que tem em comum uma professora de geografia e uma piloto de camiões? 😊

A coragem para enfrentar desafios. Uma turma de alunos cuja motivação não é, de todo, a de aprender… fechados numa sala de aula, exige também essa capacidade do professor.

Estar de bem com a vida é…. uma realização pessoal… consegue-se quando definimos o nosso rumo  e  escolhemos bem os passos a dar para seguir nessa direção… e chegar onde queremos.  Quando celebramos as vitórias e aprendemos com as derrotas, acumulamos lições que nos são úteis para as próximas decisões. Quando aceitamos quem somos e, sobre essa base, trabalhamos para construir uma pessoa melhor.

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