“‘Mãe, o que é que te prende aqui?’, Liliana Campos, o rosto do que é ser cuidador informal

“Nós somos egoístas. Fazemos tudo para manter cá as pessoas de quem gostamos. Mas, num momento de muita dor, eu já só pedia a Deus que a levasse. ‘Mãe, o que é que te prende aqui?’, perguntei-lhe. ‘É o amor que vocês me dão’, respondeu-me. E era impossível não continuar a amá-la, mimá-la, cuidá-la.” Liliana Campos, apresentadora de televisão e um rosto do que é ser cuidador informal.   

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Aos cuidadores, Liliana aconselha a não esquecerem de cuidarem de si próprios também. Liliana confessa que não foi capaz de o fazer. E conta que essa é uma das principais questões que os cuidadores lhe colocam: “Como cuidar de nós se não temos apoio?”

Existem 800 mil cuidadores informais em Portugal, o que corresponde a 8% da população portuguesa que aguarda por medidas de apoio. Liliana Campos foi cuidadora informal durante quatro anos, período em que a mãe esteve acamada, no domicílio, e com necessidade de acompanhamento durante 24 horas por dia. Passados três anos da morte de Zena Campos, Liliana recupera forças e expõe apertos e dificuldades que continuam a ser hoje vividos pelos cuidadores informais.

Parece que o assunto nunca esteve tanto na ordem do dia: a Associação de Cuidadores Informais, na voz determinada de Sofia Figueiredo, pede um Estatuto para o cuidador informal (ver entrevista). E o Bloco de Esquerda, o partido mais ativo na Assembleia da República nesta matéria, mantém-se na linha de combate por questões como a contabilização do trabalho não remunerado do cuidador para efeitos da pensão de velhice. Mas para o cuidador informal, pouco mudou nos últimos anos. A realidade, resume-se, ainda a uma proposta de lei, apresentada pelo Governo a 15 de fevereiro, com medidas de apoio ao cuidador informal e que, segundo o site do Serviço Nacional de Saúde, “irá funcionar através de projetos-piloto em todo o país, a serem avaliados ao fim de um ano”. Até lá, o dia a dia do cuidador informal é mais ou menos assim…

O primeiro sinal de alarme surgiu com o AVC. Os médicos comunicaram à família que o assunto era delicado, mas Liliana preferiu concentrar-se, durante os primeiros tempos, nas pequenas evoluções que a mãe concretizava, esforçadamente, na terapia. “A sua mãe sabe exatamente o que quer. Ela pode é não encontrar as palavras certas”, disse o médico. Era necessário identificar o “chato de serviço”, o elemento que, no domicílio, insistisse na memória e nos movimentos da mãe e que contribuísse para a recuperação dos danos cerebrais provocados pelo derrame. Liliana Campos encarregou-se da função. Reunia os requisitos: acreditava que a mãe poderia melhorar. “A minha mãe dizia-me que eu só estava viva porque, em pequena, eu não comia nada e era ela que me obrigava a alimentar-me. E estou certa de que a minha mãe viveu mais tempo porque eu lhe enfiava a comida e os proteicos pela boca adentro”, recorda Liliana.

Um dia, os papéis invertem-se. E a filha passa a cuidar da mãe. “A minha mãe costumava dizer que um dia, se ficasse doente, não quereria ir para um lar. Então eu e o meu irmão, quando a minha mãe piorou, decidimos que um lar não seria uma opção.”  

"'Mãe, o que é que te prende aqui?', Liliana Campos, o rosto do que é ser cuidador informal Liliana-Campos-4"'Mãe, o que é que te prende aqui?', Liliana Campos, o rosto do que é ser cuidador informal Liliana-Campos-3

Na altura, o irmão de Liliana estava divorciado, o que coincidiu com uma fase sem emprego. Cláudio passou a ser o cuidador informal a 100%. “Eu encarei esta situação como se fosse o Universo a colocá-lo ao pé da mãe”, conta Liliana.

Até aqui, as experiências com cuidadores e auxiliares de geriatria tinham deixado muito a desejar. Liliana tem uma mão-cheia de histórias para contar e nem todas são particularmente felizes: “Encontrei autênticos anjos da guarda, aos quais estarei eternamente grata, pois cuidaram carinhosamente da minha mãe. A minha mãe sempre foi muito serena, muito doce, era muito fácil gostar-se dela. Mas também me deparei com pessoas muito más e com situações muito complicadas.”

Um dia, estava a Liliana em trabalho na Madeira, quando a auxiliar que cuidava da mãe telefonou a comunicar que no dia seguinte não iria trabalhar. Longe e em sobressalto, Liliana foi obrigada a conseguir um plano B em poucas horas. Houve também uma auxiliar que faltou cinco dias, alegando a morte do irmão, situação que viria a ser desmentida pela própria. E houve o caso da cuidadora cuja partida explicou muitas situações estranhas: “Percebemos que esta pessoa dava à minha mãe comprimidos para dormir. Quando se foi embora, a minha mãe contou-nos que ela a tinha agarrado pelo pescoço, dizendo-lhe ‘ai de ti que contes aos teus filhos’.”

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Liliana falou pela primeira vez sobre a morte da mãe há pouco tempo, na televisão. Desde esse dia, recebeu cerca de 1200 mensagens e emails. Estão ainda 800 por responder. Todos os dias tira uma hora para dar resposta aos cuidadores informais, que vivem uma realidade que Liliana conhece. E que procura ajudar, muitas vezes, apenas com algumas palavras de apoio.

Nunca mais a mãe de Liliana passou um minuto sem que um dos filhos (ou outro familiar próximo) estivesse junto a ela. Durante o dia, Cláudio, irmão de Liliana, tomava conta das ocorrências. Liliana compensava nas ausências do irmão, nos intervalos do trabalho e aos fins de semana.

“O Passadeira Vermelha foi um presente que apareceu na minha vida. Era um escape”, recorda Liliana Campos. Quem a via deste lado do ecrã, deslumbrante e de sorriso amável, não imaginava a ginástica que Liliana fazia quando o papel de apresentadora terminava e começava o de filha-cuidadora.

“Quantas vezes chegava ao final do mês sem dinheiro. O meu irmão não estava a trabalhar e os custos com uma pessoa acamada são muito elevados. Os produtos são caríssimos”, explica.
Nas horas pouco vagas, Liliana repetia o percurso: resguardos na Santa Casa da Misericórdia; suplementos proteicos na Liga de Amigos do Hospital Garcia de Orta; fraldas e cremes em supermercados ou parafarmácias com as promoções mais competitivas.

Um dia chegou a cama articulada. No dia 11 de abril. “A partir daí, tudo mudou. Nós assistimos à tristeza da minha mãe, que ia ficar sem a sua cama, sem as suas coisas. O quarto dela estava a transformar-se num quarto de hospital. E nós não podíamos fazer nada”, conta Liliana, comovida com a lembrança.

A cama articulada iria ajudar os cuidadores a movimentarem um corpo que fica mais pesado quando a doença afeta a mobilidade. “Ao contrário do meu irmão, eu nunca consegui implementar as técnicas que me ensinavam. Fazia sempre tudo à base de força. Uma vez caímos as duas, a minha mãe em cima de mim…”

Os momentos a duas oscilavam entre os “momentos únicos de amor” e as situações dolorosas do próprio processo degenerativo. “Punha música, cantava para a minha mãe, que adorava ópera, procurava alegrá-la, distraí-la”, conta. Naquele quarto, as lágrimas estiveram sempre contidas até ao dia em que as escaras do corpo da mãe de Liliana cederam: “Pareciam papel a rasgar-se nas profundezas. Já nos tinham avisado de que a minha mãe precisaria de uma Unidade de Cuidados Paliativos, mas… Passei o dia inteiro a chorar.”

Foram então informados (um cuidador passa o tempo à procura de informação, partilha Liliana) de que existia a opção de instalar uma espécie de unidade hospitalar em casa. E com os monitores de pressão arterial e de oxigenação, e as doses minuciosas de morfina e medicação anticoagulante, aumentaram as exigências da vigilância.

As deslocações tornaram-se insustentáveis. Mesmo quando o motivo era uma junta médica. “Procurava explicar que a minha mãe não tinha capacidade de se movimentar. Até que, finalmente, um médico foi lá a casa e nem passou da porta do quarto. A minha mãe foi avaliada com incapacidade de grau elevado e passámos a receber um subsídio de 400 euros. Sempre era um valor, mas não o suficiente, por exemplo, para pagar a um cuidador”, conta.

Zena Campos partiu há três anos. Liliana regressa agora à sua vida. Adormecer sem comprimidos tem sido uma batalha, e voltar ao hospital, para uma simples consulta de rotina, só agora. “As sirenes das ambulâncias ainda me causam arrepios…”.

Rodrigo Herédia mantém-se firme a seu lado, e é a prova de que o amor sabe esperar. Mesmo quando a cara-metade hipoteca a sua própria vida para ser cuidadora informal. A ansiedade dos últimos tempos acelerou a menopausa e eliminou as possibilidades de vir a ser mãe: “Quando pensámos nisso, eu decidi esperar, porque precisava de fazer muita força com a minha mãe.” O corpo não esperou. Nesta história, só há uma vitória: o amor.

 

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Ambas católicas praticantes, Liliana conta que, numa das ausências prolongadas da mãe, questionou: “Mãe, foste ao Céu? E estiveste com o pai? E o que é que te fez voltar?”. A resposta foi pronta: “e depois, quem é que cuidava de vocês?”.

 

 

 

 

 

   

 

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