Pela primeira vez em televisão, um grupo de pessoas ia juntar-se à mesa para, de forma contundente, descodificar a política. Os assuntos-alvos seriam selecionados e abordados “sem dó nem piedade”. E sem censura, garantiu-me naquele dia Emídio Rangel.
E dou-vos a minha palavra de como a dele foi cumprida, do primeiro ao último programa.
Até 1994, nenhum órgão de comunicação social tinha desenvolvido uma proposta de entretenimento com o objetivo de crítica inteligente sobre as várias facetas sérias da sociedade portuguesa, particularmente a política.
O 25 de Abril, o dia em que o país voltou a ser uma democracia, após 48 anos de ditadura, trouxe-nos uma liberdade de expressão, de associação, de reunião, e de criação.
Sem este legado, não teria havido espaço, por exemplo, para um programa de televisão chamado Noite da Má Língua, focado em dessacralizar a política e a trocá-la por miúdos, tornando-a mais entendível, acessível.
Sem o 25 de Abril, o Emídio Rangel não me teria chamado um dia ao gabinete para me comunicar que o “primeiro programa sem barreiras” estava para muito breve. Pela primeira vez em televisão, um grupo de pessoas ia juntar-se à mesa para, de forma contundente, descodificar a política. Os assuntos-alvos seriam selecionados e abordados “sem dó nem piedade”. E sem censura, garantiu-me naquele dia Emídio Rangel.
E dou-vos a minha palavra de como a dele foi cumprida, do primeiro ao último programa. Nunca a equipa ouviu um “não vás por aí”. E assim nasceu o programa da autoria do Miguel Esteves Cardoso e da Helena Sanches Osório, comigo na edição e na coordenação.
Não seríamos ofensivos (não era o propósito do programa). Seríamos inovadores, sobretudo pela forma como daríamos – e demos – uso à liberdade de expressão.
Na verdade, o país já tinha 20 anos de democracia e nós também já tínhamos uns tantos de Independente. Essa “máquina de triturar políticos”, como lhe chamaram os autores do livro (2015) sobre o jornal Independente, Liliana Valente e Filipe Santos Costa.
A política era o prato do dia para a grande maioria da equipa. E durante algum tempo foi a minha carreira. Enquanto assessora de gabinete, integrei comitivas do governo e passei a ter uma rede de contactos que, digamos, murcharam e caducaram automaticamente, assim que estreou o primeiro programa da Noite da Má Língua.
Nos primeiros tempos, muitos dos meus colegas deixaram de me reconhecer. Cruzava-me, amiúde, com pessoas com quem tinha partilhado bons-dias sorridentes no corredor e para os quais passei a ser a mulher-invisível.
Mas dentro da estação, nunca ouvi um “nunca digas isso“. Irreverentemente, continuávamos a entregar os famosos prémios da “Má Língua”. Até que chegou o dia em que finalmente alguém nos abriu a porta e recebeu o prémio: Durão Barroso.
A partir daí, o gelo foi-se quebrando e os prémios começaram a chegar ao destino. António Guterres, atual Secretário-Geral das Organização das Nações Unidas, ganhou o prémio por três vezes. E nunca me esqueço da forma cordial como o mais galardoado da “Má Língua” nos recebeu.
Os políticos perceberam que o fair play era a arma mais eficaz face a um programa que mais não era que um puro exercício de liberdade.
Um dos programas em que falamos de Jorge Sampaio, na altura Presidente da República.