Maria Granel, Desafio Zero

“A luta que temos entre mãos é de sobrevivência”, Eunice Maia, autora de Desafio Zero

Desafio Zero é um livro (publicado recentemente) da sua autoria. E um desafio. A missão de reduzir desperdícios começou com Maria Granel (a primeira loja biológica a granel que surgiu em Portugal), estendeu-se à despensa do casal (proprietário das lojas) e é hoje um modo de vida. Ninguém diria que Eunice foi em tempos a “personificação de um pequeno desastre” ambiental. É com ela que falamos hoje, em Júlia, de Bem com a Vida.

 


No seu livro Desafio Zero, a Eunice assume ter sido “a personificação de um pequeno desastre” no que toca a desperdício ambiental, gastando boa parte do salário, todos os meses, em roupa e sapatos. Qual foi o clique que levou a tornar-se a ativista que hoje conhecemos?

Na verdade, os “pontos de luz” já estavam na minha vida e no meu caminho, só que só fizeram sentido mais tarde: venho de uma família de lavradores (do lado materno e paterno), de gente que sempre respeitou a terra e dela dependeu e nela encontrou sustento; o meu pai sempre fez compostagem, sempre praticou a gramática da poupança energética. Graças à missão e ação da Maria Granel, mercearia biológica a granel, que fundei com o meu marido, numa homenagem a estas nossas raízes ligadas ao campo, fui-me cruzando com pessoas e projetos que me inspiraram e despertaram a consciência ambiental, o meu ativismo. Depois desse despertar, o caminho é irreversível…

Também assume que não é fundamentalista, e defende pequenos passos rumo ao desperdício zero. Quais foram os primeiros passos que deu neste caminho?

Não sou mesmo e acho que o fundamentalismo e o discurso radical – de julgamento e de crítica – afastam as pessoas, quando o nosso esforço coletivo deve concentrar-se em fazer “com-unidade”, agregar cada vez mais pessoas à causa. O mais importante não é sermos todos ambientalistas perfeitos, mas começar, adotar pequenos gestos.

O meu primeiro passo foi mudar a forma como comprava os alimentos. Por motivos óbvios (sorriso), passei a abastecer-me a granel e a levar os meus próprios recipientes. Isso mudou também a forma como a despensa passou a estar organizada – cheia de frasquinhos reutilizados. Só neste gesto, reduzi drasticamente as embalagens e o desperdício alimentar lá em casa.

Pioneira na recuperação da venda a granel em Portugal, com as lojas Maria Granel. Que produtos oferecem e como é que o público tem reagido ?

Começámos em 2015 com 240 produtos alimentares bio certificados e hoje temos mais de 1200, entre alimentos e acessórios.  Nas duas lojas (Alvalade e Campo de Ourique), temos especiarias, ervas aromáticas e temperos, frutos secos, sementes, infusões e chás, algas, cereais, leguminosas, chocolates, bolachas, cereais de pequeno-almoço – tudo bio, certificado e a granel – e também acessórios “zero waste” (garrafas e copos reutilizáveis; palhinhas de inox e bambu; escovas de dentes de madeira; champô sólido e líquido a granel; sacos; alternativas mais sustentáveis para a cozinha – escovas de lavar a loiça em fibra de coco). Na loja de Campo de Ourique, temos também detergentes a granel e uma secção com ingredientes para que as pessoas possam fazer os seus próprios produtos de beleza, higiene e limpeza em casa. No piso inferior, dinamizamos também workshops (sempre com temas muito variados dentro da área da sustentabilidade).

A Eunice tem raízes minhotas, numa família de lavradores, como já referiu. As soluções que propõe na loja recuperam, em certa medida, o modo de vida rural do antigamente. Quer dar alguns exemplos?

Sem dúvida. A Maria Granel nasce, em primeiro lugar, como homenagem a essas raízes. Só depois cresceu a missão da sustentabilidade dentro de mim. No início, a loja aparece porque eu e o meu marido, longe da nossa terra, sentíamos saudade do campo, das pequenas comunidade de onde ambos provimos. O nosso conceito resgata a antiga mercearia a granel de bairro, de comércio de proximidade, de acolhimento familiar, recupera os laços de afeto e de vizinhança. É muito interessante ver também como o passado nos ensina tanto sobre o futuro: convidar as pessoas a trazer os seus próprios recipientes, a recusar embalagens, a levar exclusivamente a quantidade necessária nos seus saquinhos reutilizados é, no fundo, aproveitar as práticas antigas, modernizá-las, adaptá-las ao nosso mundo e comprometê-las com a mudança do mundo.

Adoro quando as pessoas, ainda sem entrar na loja, dizem “que cheirinho!” ou quando partilham connosco as memórias olfativas da mercearia da rua da sua infância. Também em relação aos acessórios, há a mesma reação: “ah! lembro-me tão bem de haver isto em casa dos meus avós”.

A par das lojas, a Eunice é professora e tem um projeto de sensibilização ambiental junto dos mais novos. O que lhes transmite, e como é que as novas gerações olham para as questões ambientais?

Sim, a missão da Maria Granel ultrapassa em muito as paredes da loja. É o nosso compromisso estar ao serviço da comunidade e por isso vamos a empresas e a escolas com o nosso Programa Z(h)ero, um projeto educativo ambiental de redução de desperdício. Estamos neste momento a trabalhar com duas escolas: Colégio de Lamas e Casa Pia de Lisboa. Nos dois espaços, a nossa colaboração passa primeiro por ajudar a ter consciência (e dados objetivos – métricas) sobre a quantidade de resíduos gerados e, depois, por dar assistência na formação para a adoção de medidas práticas para o reduzir. É uma metodologia que funciona de baixo para cima e por isso é tão poderosa. Ou seja, a mudança acontece porque todos os setores da escola estão envolvidos e participam, não é uma mudança imposta de cima para baixo. Acho que essa é uma mensagem que quem participa no projeto pode (e deve) transpor para a vida: não podemos esperar que entidades externas e superiores regulem, legislem, proíbam; temos um poder enorme do ponto de vista individual e temos de o suar. Nós somos – cada um de nós – agentes transformadores do mundo.

As novas gerações olham com profunda consciência, com alguma ansiedade e com grande sentido de responsabilidade. É importante dizer que a luta que temos entre mãos é de sobrevivência. E os mais jovens sentem isso mais do que nós. Eles sabem que “a nossa casa está a arder” e que, mais do que nunca, é preciso agir.

Como avalia a evolução da consciência ambiental dos portugueses, pela sua experiência e pelo desempenho das suas lojas?

Noto, sobretudo, desde 2018, que houve uma viragem, uma progressiva consciencialização. Vejo duas explicações: a diretiva europeia que veio regular e proibir o uso dos descartáveis e o número de junho da “National Geographic”, “Planet or Plastic”. A partir daí, a comunicação social começou a dar também eco ao problema do impacto do plástico nos ecossistemas e a contribuir mais ativamente para a sensibilização da sociedade. Temos de continuar esse trabalho e temos de tentar chegar a cada vez mais pessoas. E por isso fico feliz que (e dou os parabéns) por podermos nesta plataforma estar a falar sobre este assunto. Aproveito para dizer que tem sido muito importante ver as figuras públicas a usar a sua voz e a sua influência para partilhar o seu exemplo, o seu compromisso. Essa é a influência que faz falta no mundo: movida por causas e em nome de uma ca(u)sa comum.

O que diria a Eunice de hoje à antiga Eunice consumista? 

Por muito contraditório que isto possa parecer, na minha vida foi importante eu ter passado pelo consumismo para depois despertar e encontrar o meu propósito, a minha missão, o sentido dos meus dias. É o facto de ter sido consumista que me dá empatia e humildade para perceber que todos temos o nosso ritmo e que a mudança, a transição ecológica,  acontece de formas diferentes para cada pessoa. Mais, é esse passado de consumismo que me ensina a celebrar cada pequenina vitória – minha e dos outros – e a perceber que, por muito que o zero (em zero waste) seja inalcançável, essa é uma meta pela qual vale a pena lutar – e fracassar –  todos os dias.

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