João Rolo - Júlia de bem com a vida

100 anos – À conversa com um “jovem” centenário

Este senhor faz hoje 100 anos! A última vez que foi ao médico, pediram-lhe a receita. Colesterol normal. Glicémia também. “Receita? Receitas é consigo, senhor doutor”, respondeu o senhor João, com o bom humor do costume. Já foi carpinteiro, pastor, queijeiro, jardineiro. Faz a vindima e o seu próprio azeite todos os anos. Durante a ditadura salazarista, fugiu a pé para França à procura de uma vida melhor. Assistiu ao Maio de 68. Recorda-se perfeitamente da Guerra Civil Espanhola. E da primeira vez que viu um avião. E de quando finalmente confirmou os boatos de que chegaria o dia em que os veículos andariam sozinhos, sem necessidade de serem empurrados. Um homem com a sabedoria da vida na ponta da língua. Só não sabe o que vai acontecer hoje, uma festa surpresa preparada pela família. Não é todos os dias que se faz 100 anos com esta lucidez. Parabéns senhor João! Para chegar aos 100, que seja assim!
Na foto, a seu lado, aquela que foi até há bem pouco tempo, a companheira de uma vida: 74 anos e 5 meses de casamento.

Nasceu a poucos metros da casa onde vive há quase 100 anos, na Fonte Longa, distrito de Castelo Branco. E desde há algum tempo, continua a ser o eleito pela freguesia, para apagar as velas da celebração anual do Dia do Idoso. Está à frente em anos de vida e os seus amigos de outrora não lhe acompanharam o passo, mas João Rolo faz por manter o convívio e conhecer pessoas novas. “Às vezes, as pessoas não têm vagar para falar comigo”, conta. Outras arranjam sempre um bocadinho, como o grupo de inglesas entre os 70-90 anos, que ali moram perto: “elas não falam português e eu não falo inglês, mas encontramo-nos aos domingos e gostamos muito de falar uns com os outros. Entendemo-nos à nossa maneira”.

A língua nunca foi barreira. Nem mesmo nos anos 60, quando, durante o regime de Salazar, João Rolo decidiu fugir para França em busca de melhores condições para a família. Na altura, estava casado e já tinha dois filhos. “De vez em quando, a polícia ia lá a casa verificar. Era proibido abandonar Portugal, mas havia pessoas que denunciavam quem tinha intenções de fazê-lo. Eu dizia-lhes: podem vir visitar-me à vontade que eu vou para a França”, partilha, elevando o tom e o sobrolho como terá feito em tempos. Assim foi. Para efeitos de distração, deixou a sua bicicleta no exterior, junto à porta de casa. E partiu. Com oito contos no bolso para entregar ao “passador” que, por sua vez, lhe entregaria um bilhete de comboio para a capital francesa. Durante 10 noites, dormiu em palheiros e onde calhava, e fez o percurso em grupo, a pé, até ser confrontado, já na estação de comboios, com um pedido de passaporte. “Afastei-me do grupo e fugi pela linha do comboio acima. Quando, finalmente, despistei a polícia, tentei entrar no comboio. Não percebia o que diziam os franceses mas entendi um grupo de espanhóis a indicar o comboio para Paris. Mas em cada lugar que tentava sentar-me, informavam-me que estava ocupado, não havia lugar para mim. Houve então uma espanhola que gritou: ele é clandestino. Deixem-no vir connosco. E fui recebido no compartimento delas”. João recupera o fôlego, que aos 100 anos já não acompanha a velocidade dos disparos da sua memória. Do outro lado da videochamada, a neta Miriam vai dando assistência e puxando-lhe as histórias com a mestria da rádio (Miriam Gonçalves é locutora da Rádio Renascença). Miriam está de licença de maternidade, e nas horas vagas, junto do avô, tem feito curtos vídeos, conversas entre avô e neta, que celebram momentos únicos de uma longa vida.

“Lembro-me de ser inverno, estar à lareira na aldeia, e ouvir esta estória. A minha preferida! A ida a pé para França. Sim, o meu avô foi a pé para França. Muitas noites a andar e dias a dormir pelos matos, escondidos, com direito a passar noites na esquadra, sem bagagem e sem saber bem o destino. Fascinava-me esta estória e continua a fascinar-me sempre. Já a ouvi tantas vezes e não me canso”, conta Miriam. É uma das estórias que a neta Miriam registou em vídeo, na sequência dos 100 anos do avô.  

João Rolo arranjou emprego em França. Os primeiro sete anos foram passados a construir estradas. Nos restantes, foi homem de mil ofícios. “Nunca me faltou trabalho em França”, lembra. Nem mesmo quando estalou o Maio de 68, um movimento político marcado por greves e manifestações de estudantes contra o capitalismo e poder instalado. “O meu patrão disse-me: ‘isto aqui está muito mau, João. Se tens forma de viajar para o teu país, regressa. E quando voltares para França, terás o teu posto de trabalho'”. A promessa foi cumprida. “Naquela época, nem carteiros havia. Os carteiros retomaram funções quando o general De Gaulle disse: todos os carteiros que não comparecerem amanhã ao trabalho, ficarão sem emprego”.

João correspondia-se por carta com Francisca, a mulher com quem esteve casado até há bem pouco tempo, durante 74 anos e 5 meses (Francisca faleceu há um ano). A mulher que conheceu na apanha da azeitona e que tinha 15 anos quando João lhe falou em casamento. “Andámos entretidos a falar durante 2 anos, mas eu não a pedi em namoro,  comecei por pedi-la logo em casamento, aos 15”, conta.

Em 1900 e troca o passo, a escola não era a primeira opção: “o meu pai disse que tinha bom lombo para cavar e por isso não frequentei a escola”. Não aprendeu a ler nem a escrever. Mas “a necessidade faz o engenho”. “Eu pedia que  me escrevessem e lessem as cartas da Francisca. Mas uma vez tentei escrever: eu conhecia as letras do alfabeto e decidi juntá-las, formando frases para escrever uma carta. Depois, pedi ajuda e sugeriram que acrescentasse uma letra ali e acolá. Mas aconselharam-me a enviar a carta que a minha mulher iria perceber. A partir daí, passei eu a escrevê-las ainda que não soubesse lê-las”, adianta.

João Rolo é uma espécie de livro aberto de História. Alguns dos momentos históricos que aprendemos nas páginas dos manuais estão ao vivo e a cores na sua lista de memórias. “Ouvia-se dizer que um dia existiria um carro que não teria necessidade de ser empurrado. E aconteceu. O primeiro carro que eu vi foi o jipe do senhor Artur Fernandes (fundador da papelaria Fernandes e natural da aldeia Fonte Longa)”. O senhor João explica-nos como foi importante a Papelaria Fernandes para as gentes da aldeia, que ganharam emprego em Lisboa e melhores condições de vida.

O senhor João também conserva bem a imagem do primeiro avião que viu na vida: “assustou-me as cabras, as pessoas também ficaram a observar o céu, embora já soubéssemos que existiam aviões”. Mas João Rolo sempre foi um homem com os pés assentes na terra. Aos 9 anos, cavava e guardava cabritos: “Um dia, compraram 30 cabritos e pediram-me que fosse levá-los a Castelo Branco. Lá fui a pé. Perder os cabritos? Nem pensar. Dormimos pelo caminho mas cheguei com todos os animais”.

Também foi carpinteiro: “Fazia caixões. Quando alguém morria iam acordar-me durante a noite, pois eu tinha que começar logo a fazer o caixão. Fazia por medida. Uma vez lembro-me de que o morto era praticamente da mesma estatura que eu e lembrei-me de me deitar no caixão para verificar medidas. Quando a minha mulher entrou….”, recorda de sorriso aberto e sempre bem-disposto.

Todos os anos faz vindima e é o capataz exemplar que vai atrás da família a indicar as uvas que ficaram por apanhar. Todos os anos faz o seu próprio azeite. Frutas e carne, só produção própria ou da aldeia. Químicos, não muito obrigada. Ambulâncias e hospitais também dispensa.  “Vou muito a hospitais, mas só ver os outros”. A sua caminhada diária é fundamental. Aprecia tomar o pequeno-almoço com companhia. Dois copos de vinhos por dia, muito grão e bacalhau à mesa. E conversa e convívio em dia. Sempre teve trabalho. E nunca passou fome: “A minha mãe era uma pessoa muito boa. O meu pai morreu cedo, eu tinha 20 anos, mas a nossa mãe nunca, nunca nos deixou passar fome”.
A receita para chegar aos 100? Não temos. Receitas e histórias, das boas, é com o “Ti João”.

 

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