"Quero ser o Nabeiro das limpezas"

“Ambiciono vencer na vida! Um verdadeiro Nabeiro do setor das limpezas”, T., uma mulher que foi “ao fundo do poço”

Hoje escreve-me a história. Um dia, quem sabe, contar-me-á mais perto. E quando esse dia chegar, dir-lhe-ei que é uma mulher e mãe coragem. E dar-lhe-ei um abraço. Porque quando nos diz que perdeu a fé na Humanidade, a sua história diz-nos o contrário. Enquanto houver Mulheres guerreiras, há Humanidade. Um abraço. Por enquanto, à distância.   

“Quando penso na minha infância, penso no alcoolismo do meu pai. Nunca foi possível dissociar ambos. Sempre andaram lado a lado. A violência doméstica dos meus pais foi-se entranhando e fazendo parte deste quadro infeliz.
E quando, num dos impulsos irrefletidos e frequentes do meu pai, fui expulsa de casa, cheguei a pensar em “luz ao fundo do túnel”. Tinha 15 anos. Disse uma mentira em casa. Não me recordo qual mas acredito que fosse inofensiva. Como consequência, fui expulsa de casa. E uma coisa leva à outra – juntei-me com um rapaz, dez anos mais velho que eu, toxicodependente, pai da minha filha. Era uma menina quando comecei a fumar na prata. Passado um mês, passei a injetar drogas. A luz ao fundo do túnel não apareceu. A única luz era a da Lua, o meu teto durante os tempos que dormi e vivi nas ruas. Passei fome. Passei dias, semanas, sem tomar banho. E ao fim de 18 anos de uma (des)união de facto, tomei a decisão de afastar-me.

O pai da minha filha tomou a decisão de perseguir-me. Todos os dias era perseguida. Com ameaças de morte que, além de mim, se estendiam à minha filha e a ele próprio. Estava sozinha na opção que tomara. Finalmente tinha um emprego fixo, mas continuava sem um porto seguro, alguém que me desse a mão. Ajudas de autoridades ou entidades? Uma ajuda em nove que pedia. E, ainda assim, eram insuficientes face ao que vivia. E foi ao ver-me neste grande sofrimento que uma prima me abriu as portas da sua casa, no norte, a centenas de quilómetros do local onde tinha as minhas raízes. Recebeu-me a mim e à minha filha. Cheguei a sua casa com uma malinha de roupa. Nada mais. E nessa altura não houve tempo a perder. Era preciso encontrar emprego rapidamente. Comecei a fazer limpezas em hotéis e restaurantes, nos quais trabalhava horas sem conta. A minha filha ficava entregue a uma ama, cujo marido venho a descobrir que molestava a minha filha. Alertei as mães que tinham confiado as suas filhas à mesma ama e fiz queixa na Polícia Judiciária. A polícia identificou mais duas vítimas. E, por lapso, deu conhecimento do meu paradeiro ao pai da minha filha. Um grande lapso que nunca deveria ter cometido.

Mantive o meu trabalho de sol a sol no setor das limpezas. Um dia pensei em fazer uns panfletos com os meus serviços e distribuir pela cidade. Correu muito bem. A palavra passou de boca em boca. E atualmente não tenho mãos a medir para tantos contactos/pedidos e novas clientes. Ambiciono vencer na vida! Um verdadeiro Nabeiro do setor das limpezas e afins! 🙂

As pessoas mais próximas de mim são, além da minha filha, a minha mãe que entretanto teve a coragem de sair da sua casa e veio viver comigo, e a minha prima, que me acolheu. Foi a única. Foi a minha única tábua de salvação na altura. De resto, não tenho amigas, não fiz amizades. Virei uma eremita. Refugiei-me no trabalho e em casa. Raramente saio e, quando saio, é com a minha mãe e filha… Aqui para nós, que ninguém nos lê.. "Ambiciono vencer na vida! Um verdadeiro Nabeiro do setor das limpezas", T., uma mulher que foi "ao fundo do poço" 1f92d se eu lhe disser que nunca fui ao cinema, não lhe minto! Onde vou buscar forças? É uma excelente pergunta. Sabem, perdi a fé na humanidade, sou uma revoltada com as instituições que em nada me ajudaram, com um sistema falhado que parece que não existe. Mas, quando se tem uma filha para criar e colocar comida na mesa, é essa a missão que nos move. Se eu desistisse, o que seria da minha filha? Iria ficar entregue a um sistema que em nada confio e deixá-la-ia entregue a uma humanidade desprovida de valores? Não, jamais poderia baixar os braços e deixar que tal acontecesse.

Uma das minhas clientes é psiquiatra e está a ajudar-me a superar esta montanha russa emocional que vivi. E porque carrego, como todos, uma vida inteira, ainda não sinto coragem para falar de assuntos que são tão sensíveis. Hoje, a minha vida está a estabilizar. Tenho casa (alugada), trabalho e saúde e a minha filha também.

Quando se fala em superação, não sei. Limitei-me simplesmente a aguentar as pancadas da vida. Fui ao fundo do poço, e foi de lá, que vi a luz… Agora surgem as marcas de guerra. As emocionais. E é com elas que me debato, é um processo. Quiçá um dia eu tenha a leveza necessária para conseguir falar sobre isso ao invés de escrever. E, nessa altura, Júlia, terá história para um programa  de sete horas.”

 

 

Comentários

comentários