A Vida Privada das Elites do Estado Novo

Muitos dos que ali estavam (FNAC Colombo, quinta-feira passada, dia de lançamento deste livro) partilham a mesma convicção: A pequena história é aquela que muitas vezes dá a verdadeira moldura ao retrato do tempo.
A Conceição Queiroz, a menina que odiava História, deixou-se enfeitiçar pelos relatos do passado e desenvolveu um documento que poderia ser meramente académico, mas que se transformou num texto de costumes.

Eu adoro as costuras de um tempo que não conheci.
E não é por acaso que escolho este terminologia que cruza o relato da história contemporânea com os alinhavos e pontos do que está pendurado no armário da representação social.

É a nossa autora que escolhe, ao transformar a sua tese de mestrado num livro de memórias. É ela que nos aponta o caminho e escolhe as vozes femininas e as suas impressões como a narrativa principal deste livro.

A Vida Privada das Elites do Estado Novo. Fez pesquisa, investigou muito, cruzou fontes e leu muitos autores. Mas afortunadamente, foi buscar o relato vivo dos que ainda se lembram. E uma elite que tinha como código principal a discrição abriu o livro da memória para a nossa autora.

Não pode ser por acaso – grande parte das vozes que ouvimos neste livro são femininas. Sabemos que, em qualquer tempo ou vivência, as mulheres registam o que dá a temperatura às coisas. E por isso, neste livro, fala-se muito de vestidos, jóias, cabelos, adereços, as insígnias de uma classe privilegiada, cozida com o poder político. As mulheres destes últimos quarenta anos são os troféus da sua classe e representam-na até hoje, como guardiãs de um tempo superior. Como se essa fosse a única realidade .

Vestidos, mulheres, o traje que nos veste perante os outros. A confecção de um vestido tem uma tradução que não corresponde apenas à vaidade da sua proprietária. E por isso Conceição conta aqui outra história: A representação social de quem o vestiu, o contexto e a razão para o qual foi encomendado. Os vestidos e o vestuário em geral, como todos sabemos, nunca são inocentes.

Mas há mais nesta vida privada, feita de privilégios concedidos pelo nascimento e pela condição económica.

Durante quase todo o século vinte, Portugal é o território de um núcleo restrito de famílias que acumulam património, dinheiro e influência.
A nossa autora mostra-nos como acreditamos ser cosmopolitas porque soubemos receber a rainha de Inglaterra, não como soberana de um país estrangeiro, mas como entidade quase divina, porque usava coroa ou tiara. E como republicanos recentes, ainda nos fugia o pé para a idolatria real. Grande relato deste evento, no qual só Salazar teve alguma contenção e mandou comprar um Rolls-Royce, em segunda mão, porque já se tinha gasto muito dinheiro.

Mas há mais. O constrangimento da pequena moral lusitana, porque as famílias refugiadas do Pós-Guerra deixam um rasto de modernidade nas areias e nos costumes da linha de Cascais. Este livro aborda como as nossas elites se sentiam superiores porque as contingências da grande História, feita de guerra e sofrimento, trouxe para os degraus da entrada das residências do Estoril monarcas e nobres em fuga. E finalmente o grande poder económico dos finais dos anos 50 e 60.

A grande bolha da elite portuguesa deste tempo esquecia a pobreza dos seus contemporâneos e deslumbrava-se com as festas, a beleza das estrelas de cinema e o cosmopolitismo inteligente de alguns magnatas internacionais que encontraram em Portugal um porto de abrigo para as suas famílias, interesses e residências.

Já tinha ouvido falar no mítico ano de 68. A semana louca que fez acontecer em Portugal a festa Shlumberger e o evento Patino.
Não conhecia a estatística. Os quilos de lagostas, a pastelaria delirante, a música interpretada por orquestras americanas contratadas para o feito ou a perplexidade de um chefe de segurança que numa única noite tem que arrumar quase mil bólides de alta cilindrada, num país que não tinha parque automóvel. E tudo isto, na semana que antecedeu o internamento de António Salazar .

Mas a Conceição conta-nos tudo. Quem estava, quem vestiu o quê é até quem não foi porque o Chefe de Estado estava incomodado com tanta ostentação.

Absolutamente delicioso .

Ficamos a saber que Audrey Hepburn se atirou para a piscina Patino de madrugada, que Francisco Balsemão ficou desiludido com a beleza de Gina Lollobrigida, porque era mais pequena e roliça do que ele tinha imaginado.

Mas o magnata Patino, que não era um matulão de estatura, teve a simpatia de nos legar um acervo de obras de Arte que estão reunidas e expostas no Museu de Arte Antiga. E que quase não ficou em Portugal, porque Salazar tinha dúvidas se poderia receber este contributo generoso, uma vez que o senhor Patino tinha um conflito conjugal a ser resolvido noutro país. Ah …a pequena moral lusitana.
Conceição Queiroz deixa nos anexos deste livro as provas históricas deste disparate.

Repito, uma delicia.

Para finalizar, uma nota pessoal.
A nossa autora procurou um testemunho para contrapor este relato de vivências em regime de clube exclusivo que mostrasse que existia uma classe média esclarecida e culturalmente atuante que mimetava muito dos hábitos desta elite, mas procurava novos caminhos ideológicos e novos parâmetros de consciência social.

E não é que na história dos outros, descubro que a voz da classe média neste livro pertence a Magda Pinheiro, minha prima direita, emérita historiadora que conta à Conceição aquilo que era um segredo na minha família.
A fuga desta prima no final dos anos 60 foi um cisma familiar que nunca me foi contado, mas que formatou e condicionou a forma como fui educada na minha adolescência .
A História é um movimento contínuo e orgânico e todos estamos ligados a ela. É por isso é tão importante lê-la.

Obrigada Conceição.

(Foto: DN)

 

 

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