Gustavo Carona, voluntários dos Médicos Sem Fronteiras

“A vacina que deveria ser descoberta era contra a maldade e a hipocrisia”

Tem 36 anos, sete missões com os Médicos Sem Fronteiras e muitos momentos difíceis, como ouvir bombas a cair quase todos os dias… Está de partida para África. Numa edição dedicada à vocação, não poderia deixar de falar com quem se dedica a salvar vidas. Gustavo não é só um médico. É um ser humano precioso.

Gustavo Carona abraçou desde cedo o voluntariado. Primeiro em representação dos Médicos do Mundo Portugal, pelos quais viveu a primeira experiência em Moçambique. Depois ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma organização internacional, não governamental e sem fins lucrativos, fundada em 1971, em Paris, que oferece ajuda médica e humanitária em situações de emergência e que representa, muitas vezes, a última esperança para muitos.

As sete missões de Gustavo levam-no a reflexões constantes sobre o que fazer para aproximar os mundos. E, em cada missão, acredita que leva consigo todos os que acreditam que vale a pena lutar por um mundo melhor. Em setembro, este médico, que trabalha nos Cuidados Intensivos do Hospital de Matosinhos (Pedro Hispano), parte para mais uma missão humanitária na República Centro-Africana, onde vai permanecer por quatro meses. “Mais um Natal longe da família, mas com o entusiasmo e a motivação como se fosse a primeira vez”, confessa.

Para si, o que é ser Médico Sem Fronteiras? O que o levou a seguir o caminho do voluntariado?

Eu entrei para os Médicos Sem Fronteiras em 2009. Desde então, já cumpri sete missões e estive em locais como Moçambique, República Democrática do Congo, Paquistão, Afeganistão, Síria, República Centro-Africana e Iraque. Mas na maior parte do tempo tenho trabalhado em Portugal.

Para mim, dedicar-me à medicina humanitária é gostar de ser médico. É uma vontade de ser mais justo, honesto e coerente. Se tivesse a possibilidade de salvar centenas ou milhares de vidas, não o faria? Eu fui atrás das emoções que me pareciam mais bonitas e assim quero seguir a minha vida.

Sempre quis ser médico?

Quando era adolescente, fui um desportista fora de série, e larguei a minha paixão, o bodyboard, devido a um problema de saúde. Essa enorme frustração, transformei-a em vontade de ajudar os outros. Enquanto a vida humana for o bem mais precioso, a medicina será sempre a mais bonita das ciências.

De todos os locais onde já esteve, qual foi o mais complicado?

É uma pergunta muito difícil, pois comparar sofrimento coletivo e catástrofes humanitárias é um exercício muito injusto. Talvez a Síria tenha sido a minha missão mais intensa, pela proximidade do conflito e pela emergência de grupos radicais. Ouvia bombas a cair quase todos os dias e a população sofria horrores a vários níveis.

Geralmente, com que obstáculos ou dificuldades se depara um médico que chega ao terreno?

O clima pode ser terrível de tolerar, a restrição de liberdade total é muito exigente, assim como a intensidade de trabalho ou a frustração de por vezes não poder fazer melhor o meu trabalho. Mas, de longe, o mais difícil é a vida que deixamos para trás, sabendo que estamos a magoar alguém de quem mais gostamos.

“A vacina que deveria ser descoberta era contra a maldade e a hipocrisia” Gustavo-Carona3_red

Que problemas de saúde costumam encontrar?

Varia muito em cada zona do planeta. E eu só domino os factos da minha área de conhecimentos (Anestesia e Cuidados Intensivos). Mas, apesar de ter trabalhado sempre em conflitos, as necessidades no que respeita a cuidados de saúde urgentes vão muito para além dos feridos de guerra. As guerras matam muito mais indiretamente pela ausência de pessoas competentes e de estruturas adequadas do que propriamente pelas balas ou pelas bombas.

Enquanto médico, que situações mais o chocaram?

Como médico, acho que já nada me choca, já vi de tudo e muitas vezes. Mas como pessoa o que mais me choca são as histórias de vida profundamente tristes com que sou confrontado. Saber o que seres humanos exatamente iguais a mim já passaram causa-me um enorme desconforto.

E pode contar-nos a experiência mais emotiva que teve?

A seu tempo, vou escrevendo no meu blogue, quando tenho tempo e vontade de me confrontar com as minhas emoções… pois tenho histórias muito fortes, e até escrevê-las é difícil. Na minha última missão em Mossul, no Iraque, testemunhei histórias duríssimas, de quem esteve meses sem comer, de famílias desmembradas pela guerra, e um sofrimento inimaginável.

Uma saúde sem fronteiras é uma utopia? Como se poderia equilibrar a igualdade de acesso aos cuidados humanitários e de saúde?

Para começar, tínhamos de dizer a nós próprios todos os dias: “Todas as vidas são iguais.” E certamente deixaríamos de desprezar tanto do sofrimento que nos rodeia. Eu penso que a solução mais sólida e duradoura passa pela formação e pela ajuda in loco, mas sempre com uma perspetiva pedagógica e de sustentabilidade.

O legado que nós deixamos − no meu caso, na formação médica − é o que realmente contribui para a resolução dos problemas de fundo. A formação e o conhecimento são tudo na vida. O ideal será que um dia não precisem de presença externa e mantenham a qualidade nas diferentes áreas profissionais.

Que revolução na medicina ou que vacina gostaria de ver descoberta?

As doenças que mais matam, principalmente crianças e jovens, já têm cura. Há milhões de pessoas a morrer de fome, não é preciso fazer nenhuma descoberta para lhes dar de comer. As minhas reflexões vão mais no sentido do comportamento humano, por isso penso que a vacina que deveria ser descoberta era contra a maldade e a hipocrisia.

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