Com a “Família Numerosa Europeia do Ano”

Respeito. Olhei Inês com respeito durante toda a produção. Ao anoitecer, recebi uma mensagem dela. Inês tinha-se apercebido do meu desconforto em envolver os seus quatro filhos, em especial o Pedro, nesta sessão fotográfica para o Dia da Mãe. Inês escreveu a dizer que os filhos tinham adorado a tarde com a Júlia. E que o Pedro estava super bem-disposto e tranquilo. Atenuei a aflição. Ficou só… o respeito pela generosidade e coragem desta família. A Família Numerosa Europeia do Ano!

Inês e Gonçalo são os pais de Gonçalo, 9 anos, Francisco, 8 anos, Pedro, 5 anos e Leonor, 2 anos.

O Pedro nasceu com uma doença genética rara e incapacitante, o que levou Inês a abandonar o seu trabalho para se tornar cuidadora informal. Um estatuto que existe. E ao mesmo tempo não existe (já lá vamos…).

A Confederação Europeia das Famílias Numerosas diz que a Europa “precisa dos valores que se vivem numa família numerosa: a generosidade, a solidariedade, a coragem, a compreensão”, e que “todas estas virtudes estão presentes na vida desta família”. Por isso, atribuiu em 2017 o prémio ‘Família Numerosa Europeia do Ano’ à família portuguesa Dias da Silva.

Inês começa por me contar como surgiu este Prémio.

Com a "Família Numerosa Europeia do Ano" julia-sem-julia

Mãe Inês – Família Numerosa Europeia

No ano passado, durante a Caminhada pela Vida, uma iniciativa anual organizada pela Federação Portuguesa pela Vida, Inês e Gonçalo fizeram-se à estrada com os seus quatro filhos. Inês conta que a meio do percurso, sentiu necessidade de ligar o oxigénio do seu filho Pedro à tomada. Na azáfama típica de quem tem de organizar a mochila para quatro crianças sempre que se sai de casa, Inês terá trocado os adaptadores e na mochila apenas tinha levado o que funcionava em automóveis.

“Quando vi um carro da polícia, atirei-me para cima da viatura e pedi-lhes que me deixassem ligar o Pedro ao adaptador do isqueiro.” E assim se resolveu a situação, enquanto o pai, Gonçalo, foi buscar o carro, a alguns metros de distância.

Inês conta que o episódio marcou um casal que participava na mesma caminhada, algo surpreendido pela tenacidade desta família que insistia em sair da sua zona de conforto.

Pedro respira com auxílio de um equipamento de oxigénio. É alimentado por seringa, via PEG (quando a alimentação oral está comprometida, coloca-se uma sonda no estômago através da parede abdominal e a alimentação passa a ser realizada por seringa) . Tem dificuldades locomotoras, pelo que usa cadeira de rodas. Requer cuidados permanentes, exigentes e especializados. Mas Pedro também estava na caminhada, com os seus irmãos.

“Existem muitas crianças com deficiências. Elas podem não estar no Colombo ou na rua, mas existem”, diz Inês.

Impressionado pela postura de Inês e Gonçalo, o casal disse-lhes que iria propô-los para o prémio de Família Numerosa de Portugal. Uns dias depois, veio o telefonema: “Ganharam.” Inês agradeceu, sem atribuir, porém, grande importância ao assunto. Algum tempo depois, mais novidades: “Também ganharam o prémio de Família Numerosa na Europa e a distinção será entregue em mãos pelo responsável.”

Vamos agora à história desta família. Que pode começar pelo casamento de Inês e Gonçalo, em 2007. Durante o namoro, Inês conta a Gonçalo que há uma doença grave na família e que poderá, por isso, vir a ter filhos doentes. Mas Gonçalo não tem sequer um momento de recuo.

Inês é a mais velha de três irmãs. Leonor morreu aos 5 anos (Inês tinha na altura 7 anos) sem um diagnóstico preciso. Tinha dificuldades motoras e cognitivas e, à primeira grande complicação, não sobreviveu.

Quando nasceu Constança, identificaram-se complicações semelhantes às da irmã Leonor, encontrou-se o diagnóstico e ponderou-se a hereditariedade da doença. Inês fez testes e, quando completou 18 anos, os pais revelaram-lhe o resultado dos exames: era portadora desta doença rara.

Não partilhou de imediato a Gonçalo, com quem começou a namorar após a morte de Constança. Gonçalo era um jovem de namoros de curta duração e este poderia ser mais um. Quando fizeram um ano de namoro, Inês decidiu que estava na altura. E Gonçalo não vacilou. Por poucas razões, mas as suficientes: “Os meus pais, apesar de existirem doenças na família, eram unha e carne. Também lhe chamou a atenção a forma como convivíamos com a doença da Constança e a maneira como eu tratava dela.

Inês revela que, quando perdeu a sua irmã Constança, sentiu que perdeu uma filha: “Era eu que cuidava dela sempre que os meus pais se ausentavam.”

Foi com a Constança que a sua opinião sobre o aborto mudou. Inês conta-me que tinha 18 anos quando, um dia, depois de ter ouvido um debate e os argumentos a favor do aborto, voltou para casa com a certeza formada na sua cabeça: “Claro que é legítimo abortar uma criança deficiente.”

Nesse dia, Inês chegou a casa e fez o ritual do costume: “Fui ao quarto da minha irmã, onde ela estava, como sempre, ali deitada no chão, sem conseguir mexer-se, e agachei-me para lhe dar um beijinho. Ela olhou para mim e, nesse momento, destronou todos os argumentos que eu ouvira no debate.”

Precisamente quatro anos depois da morte de Constança, Inês e Gonçalo casaram-se: “Se tínhamos a bênção de Constança no começo do namoro, teríamos a bênção de Constança no casamento.”

A gravidez

Não ter filhos nunca foi sequer um assunto. Para Inês e Gonçalo, a maternidade fazia parte do conceito de família.

A verdade é que “cada gravidez era uma ansiedade. Olhava para a ecografia e pensava: ‘Este bebé pode ser doente’”, recorda Inês. Primeiro, nasceu o Gonçalo, um bebé saudável, hoje com 9 anos. É o melhor amigo do seu melhor amigo.

Depois de Gonçalo, veio o Francisco, mais um bebé saudável, hoje com 8 anos, muito independente, só gosta de fazer o que quer.

“Durante cinco anos, fomos uma família de quatro pessoas. Uma família que ia para todo o lado. Aos sábados de manhã, colocávamos as fraldas na mochila e só voltávamos à noite.”

“Gonçalo e Francisco eram dois bebés saudáveis e depois… uma pessoa sossega. Pensa que já não vai acontecer”.

Após um intervalo mais prolongado, veio a terceira gravidez e os primeiros sinais não eram animadores. “O bebé não crescia. Fui internada. Recordo-me de estar no duche e de chorar baba e ranho. Tinha chegado a hora. Interiormente, senti que tinha chegado a criança doente”. O casal, porém, não equacionou alternativa. E avançou com a gravidez.

Inês recorda que, quando Pedro nasceu, a primeira reação do pediatra foi positiva. Um dos testes que poderiam detetar a presença da doença era negativo. “Graças a Deus, está tudo bem!” Mas Inês não ficou convencida: “Durante a noite, comecei a olhar para o Pedro e percebi que o seu rosto era igual ao da Leonor.”

“Isto é muito difícil de assumir… mas às vezes, naquele momento, pedimos que aquela criança morra para que não tenha de ser carregada nos braços o resto da vida. Foi o que eu pedi naquela semana, naquele primeiro mês. Até que passado um mês, ele dá entrada nas Urgências de Santa Maria, praticamente morto, e eu começo a rezar para que ele sobreviva”, reconhece Inês.

Este seria o primeiro episódio da longa aventura da saúde do Pedro.  Aos cuidados intensivos, o Pedro haveria de regressar muitas mais vezes, em estado crítico. Durante três anos, Inês e Gonçalo viveram uma vida atribulada, entre a cama do hospital e a de casa.

“Não é suposto passar a vida nos Cuidados Intensivos”, dizia-nos um médico, como que a dar-nos entender que o Pedro não tinha capacidade para viver. “Nós vamos dar a volta a isso”, contrapunha outra médica, com sinais de esperança.

Passaram-se três anos até Inês e Gonçalo, juntamente com a equipa clínica e um aparato de máquinas em casa, conseguirem estabilizar o Pedro, que passou a ser ventilado à noite e a ser alimentado via PEG.

Arriscou ter o quarto filho?

“Um dia falámos sobre o assunto e colocámos imediatamente de parte a ideia de ter um quarto filho. Ainda hoje me parece impossível. Mas a verdade é que a Leonor apareceu. E depressa percebi que era uma gravidez igual às primeiras”, recorda Inês.

Com a "Família Numerosa Europeia do Ano" 2015-03-11-18.44.31

Família Numerosa Europeia do Ano

A relação com os irmãos 

Leonor tem 3 anos e é uma enfermeira exemplar: “Está sempre a limpar a baba do irmão”. 

 

 

Com a "Família Numerosa Europeia do Ano" leonor-leonor

A “enfermeira” de Pedro

“O Pedro tem-nos trazido muitas alegrias. Mesmo sendo assim como é”, conta Inês. Inês recorda o episódio (na foto) em que os irmãos Gonçalo e Francisco estão com a bola do futebolista Eder. Antes de ir a leilão, a bola estava no Espaço Familiar Ronald McDonald, um lugar de descanso no Hospital Santa Maria, para as famílias das crianças em tratamento hospitalar. “Se não fosse o Pedro, nunca teriam agarrado a bola do Eder”, expliquei-lhes.

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A ligação entre Leonor e Pedro…

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Os irmãos sabem que, se não fosse o Pedro, eles não teriam agarrado a bola do Éder

 

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Os 2 protetores de Pedro

A realidade do Cuidador Informal 

Desde que Pedro nasceu, a mãe Inês não voltou ao trabalho. Passou a receber um subsídio que existe para este tipo de situações − assistência à família, mas, além de limite de valor, tem prazo, e acabou no mês passado. Neste momento, está com licença sem vencimento.

Apoios como as UMAD (Unidades Móveis de Apoio ao Domicílio) a Fundação do Gil são muito importantes, refere Inês. Mas o Pedro, tal como outras crianças, necessita de vigilância a 100%. É necessário aspirar o Pedro, ventilar e alimentar.

Inês assiste e participa em debates na Assembleia da República, na expetativa de perceber que soluções podem ser criadas: a existência de uma remuneração para o Cuidador Informal, a flexibilidade de horários para os pais que continuam a trabalhar e a comparticipação em suplementos alimentares são temas em cima da mesa.

Enquanto isso, em casa desta família, a vida continua.  E a generosidade, e a coragem, e a solidariedade, e a compreensão também.

 

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