Dulce, a professora portuguesa que acabou de chegar do Campo de Refugiados de Elefsina, Grécia, conta-nos o que viu, o que não queria ver. A carta que Dulce escreveu a António Guterres e a Marcelo de Rebelo de Sousa é um grito de alerta.
Dulce já perdeu a conta aos projetos de voluntariado em que esteve envolvida. Mas havia uma área à qual a professora nunca antes tinha oferecido o seu tempo. Uma questão que considera ser uma causa incontornável nos dias de hoje: Refugiados.
Este ano, pela primeira vez, candidatou-se por isso a uma Organização Não Governamental que apoia refugiados no terreno. E um dia, a carta chegou-lhe a casa. A Drop in the Ocean estava à sua espera, na Grécia, mais precisamente no Campo de Refugiados de Elefsina.
Dulce fez as malas, decidida a passar o seu único mês de férias nos arredores de Atenas e sem imaginar o quanto agosto de 2018 iria mudar a sua vida.
O primeiro “murro no estômago” aconteceu no momento imediato da chegada. Dulce levava coragem e esperança para o destino. Mas quando os seus olhos se depararam com o amontoado de gentes, um campo de refugiados que, em condições, fazia lembrar o cenário de guerra, Dulce desfez-se em lágrimas.
“Não posso chorar. Estou aqui para ajudar estas crianças”, repetia no seu íntimo. Mas naqueles precisos minutos, sentiu como que o seu corpo a desvanecer, engolido pela tristeza das famílias e crianças de sorriso amargo, sem espaço nem tranquilidade para serem crianças, pessoas.
“Chorei todos os dias”, confessa. Porque todos os dias havia motivos para chorar. “Uma vez, uma mãe sentou-se a meu lado e disse-me: ‘sabe, Dulcinha, a última vez que vi o meu filho tinha o corpo completamente despedaçado por uma bomba. E eu não pude fazer nada. Nunca me vou perdoar'”.
Dulce conta que costumava guardar as lágrimas para o final do dia, na solidão da noite. Mas recorda que, mais uma vez, nesse episódio, não conseguiu evitar a emoção. “E esta mãe sorriu-me e enxugou-me as lágrimas. Como só as mães sabem fazer”, conta.
Entre as centenas de homens, mulheres e crianças que ali chegam de barco, depois de partirem da Síria e do Iraque e depois de muito caminharem e desbravarem montanhas, sem água nem comida, Dulce recorda sempre O. Uma criança que passou a adormecer ao seu colo, com as suas canções de embalar, e que corria para os braços de Dulce mal a avistava pela manhã.
Dulce percebeu que o seu sorriso era o maior apoio para aquele campo, um porto de abrigo para tantos refugiados que, sem culpa de uma guerra, enfrentam uma vida de fuga e de fome.
Nos dias anteriores à sua chegada à Grécia, Dulce soube que tinha ocorrido um ataque policial no campo de refugiados. Um ataque desproporcional, do qual “os canais de televisão não falaram nem reportaram”.
Dulce regressou a Portugal para começar o ano letivo. Mas o campo continua na sua memória todos os dias. O que fazer para ajudar, perguntamos. Informar as pessoas do que se passa, de quem são os refugiados, é um princípio, diz-nos.
Os refugiados são pessoas que não têm nada. E ao mesmo tempo, pela forma comovente como cuidam uns dos outros, parece que têm tudo. Têm amor, explica Dulce. Quantas pessoas andam preocupadas com os seus valores materiais, o seu umbigo. E estes refugiados, que nada têm, revelam tanto amor uns pelos outros.
Obrigada Dulce.
Partilhamos duas cartas sobre a experiência de Dulce no campo de refugiados.
Uma carta foi escrita por Dulce, em agosto, em pleno campo de refugiados, na Grécia. Outra foi escrita, já em Portugal, destinado ao pequeno O., um dos bebés vulneráveis daquela campo.
Ex.mos Senhores Secretário Geral da ONU, Senhor Engenheiro António Guterres, e Senhor Presidente da República de Portugal, Professor Marcelo Rebelo de Sousa,
Em primeiro lugar, agradeço desde já a vossa atenção, o vosso carinho e a vossa disponibilidade.
O meu nome é Dulce Machado, sou portuguesa, Professora. Desde sempre que sou uma pessoa ligada às diferentes causas sociais, à luta pelos direitos humanos. Sempre fiz voluntariado, em várias áreas. Não sou uma pessoa conhecida, famosa, muito menos uma heroína. Sou, simplesmente, uma cidadã que acredita que todos juntos podemos fazer a diferença, mudar para um Mundo mais bonito e justo. Sou uma mulher que acredita na generosidade, na solidariedade, na verdade, no amor. Sou uma professora que acredita que através de uma educação baseada na igualdade, na justiça, no respeito pela diferença, pelo outro, na liberdade, na criatividade, no sonho, podemos ser cada vez melhores.
Este ano, resolvi fazer, durante o mês de agosto, o meu mês de férias, um voluntariado diferente. Neste momento estou a fazer voluntariado num campo de Refugiados, na Grécia, através de uma ONG, A Drop in the Ocean. Estou no Campo de Refugiados de Elefsina. Elefsina é uma pequena cidade que se situa nos arredores de Atenas.Escrevo esta carta para vos alertar o que se está a passar aqui. Em pleno século XXI. Para vos pedir ajuda para todas estas pessoas!
O tema dos Refugiados sempre foi algo que mexeu muito comigo, que me emociona bastante. Ser Refugiado não é uma opção de vida, uma escolha! Estas pessoas são forçadas a fugir das suas terras, das suas casas, fogem da guerra, da morte, de abusos, de uma violência extrema. No meio da noite, mães, bebés, crianças, fogem através das montanhas, à mercê de homens armados e contrabandistas. Não sabem se vão chegar com vida. Fogem em barcos. São seres humanos que têm direitos, que só querem ser felizes e recomeçar as suas vidas. Mas, onde estão os direitos destas pessoas? Onde está o direito destas crianças a ser criança? Onde está o direito à dignidade humana? Onde?Elefsina é um campo de Refugiados com condições horríveis, estas pessoas, crianças e adultos, vivem, ou melhor, sobrevivem em condições desumanas! Desumanas! Não há condições nenhumas, é, simplesmente, cruel. A maior parte dos residentes são oriundos da Síria e do Iraque.
É uma área muito pequena para dar resposta a todas as pessoas que ali estão. Há duas supostas casas de banho, que têm que ser partilhadas por todos. Uma para as mulheres e outra para os homens. Dormem em condições inimagináveis. Amontoados. Adultos, crianças, bebés. Não há higiene, não há cuidados. O cheiro é algo indescritível. Esta ONG, norueguesa, tem feito um trabalho admirável, heróico! Com os poucos recursos que têm, tentam dar um pouco de dignidade, de amor a todas estas pessoas, principalmente, às crianças. Conseguiram arranjar um pequeno espaço para as mães tratarem, com o mínimo de condições, dos seus bebés. Fizeram, numa caravana, um espaço onde as crianças mais pequenas podem dormir e descansar como deve ser. Onde corre um bocadinho de fresco, onde adormecem de mãos dadas, com uma luz de presença. Como qualquer criança têm medo do escuro, estas mais pois o escuro lembra-lhes a guerra, os tiros, as mortes, as montanhas escuras, os homens com armas, o ladrar dos cães, os botes minúsculos cheios de pessoas. E, por fim, têm a caravana principal, onde se realizam atividades, aulas para crianças e adultos.
São a única organização presente neste Campo de Refugiados. O que me leva a questionar, se por acaso eles não estivessem aqui, o que seria destes seres humanos?? Quem é que brincava com estas crianças? Quem é que lhes dava colo, quem lhes limpava as lágrimas, quem lhes dava amor, quem lhes tentava transmitir um pouco de confiança? Quem as ensinava a ler e a escrever? A descobrir novas palavras, novos significados? Estas crianças, estas pessoas vêem o Mundo através de redes e portões. No outro dia, um dos portões caiu em cima de duas das crianças, ficaram bastante magoadas. Foram tratadas no hospital e voltaram para ” a sua casa”, mas não tinham um miminho, uma boa cama para descansar, um lençol para se taparem, um prato de sopa quentinha à sua espera.
Não tinham, porque, simplesmente, estes pais, estes maravilhosos pais, estes heróis não têm para oferecer aos seus filhos. É um direito negado. Este acontecimento não foi notícia numa capa de jornal, não abriu o Telejornal, nem sequer teve direito a um pequeno anúncio. Se tivesse sido noutro lugar, noutro sítio, com outras crianças, tenho a certeza que tinha chegado a todo o mundo. Mas, infelizmente na mentalidade desta sociedade são refugiados, são mais uns que estão a fugir, que não vale a pena falar. Para quê perder tempo? Para quê se preocuparem? É como se tratassem de uns seres humanos de segunda categoria. Que tristeza tão grande! Que ignorância! Onde está a suposta Europa solidária, defensora dos direitos humanos?
Estas pessoas fogem de situações traumáticas, chegam à espera de melhores condições de vida e, simplesmente, são atirados, como se de uma mercadoria se tratasse, para um sítio qualquer, depositam as pessoas aqui. Esquecem-se delas! Não lhes ligam! Estas pessoas não têm perspectivas de futuro, não há objetivos. Muitas delas já vêm de outro Campo de Refugiados. Passam as suas vidas, a irem de Campo para Campo ou a ficarem em sítios como este. Sítios que fazem lembrar os Campos de Concentração da Segunda Guerra Mundial.
Por favor, ajudem-me a ajudar estas pessoas, estas crianças. Crianças marcadas por feridas sem cura, que as vai acompanhar para o resto das suas vidas. Crianças que, apesar destas marcas, têm o sorriso mais bonito, mais verdadeiro que eu já vi na minha vida. Crianças que sonham em ter um futuro melhor, crianças que também são o nosso futuro. Crianças que nunca viram um arco-íris, que não sabem o significado de Paz e Liberdade!Espero que esta minha carta, de alguma maneira, possa ajudar os Refugiados do Campo de Refugiados de Elefsina. Que façam, urgentemente, alguma coisa por eles. Por todas aquelas crianças. Que me ajudem a mostrar a todas elas que,também, são importantes e que os sonhos se podem transformar em realidade!
Peço a vossa compreensão, a vossa humanidade para este assunto. Estamos a falar de vidas humanas. Ajudem antes que seja tarde demais.
Muito obrigada! Muito obrigada!
Com o meu maior respeito. Atenciosamente,
Dulce Machado
Carta para O.
Meu O. lindo, meu bebé. Disseram-me hoje que começaste a gatinhar! Fiquei tão feliz, tão emocionada. Meu pequeno príncipe, meu pequeno herói. És o meu orgulho. Desculpa por não estar aí para ver os teus primeiros passos. Será que, um dia, te vais lembrar do meu abraço? Do meu sorriso? Das minhas histórias? Das músicas que te cantei? Será que te vais lembrar da minha voz? Será que, um dia, vais saber como te tornaste tão importante para mim? Como já fazes parte da minha vida? Será que vais saber o quanto me ensinaste? O quanto fizeste de mim uma pessoa muito melhor? O quanto aprendi contigo? Deste-me tanta força, tanto amor. Tenho muitas saudades do teu abraço, do teu sorriso gigante sempre que te pegava ao colo, tenho saudades de te limpar as lágrimas, das nossas brincadeiras, de te ver todos os dias. O. o meu principezinho. Mesmo longe, podes ter a certeza de que estarei sempre perto de ti. Prometo! Estarei, sempre, pronta para o que precisares. E, mesmo, que dês os primeiros passos sem eu estar presente, tentarei acompanhar o teu caminho. Tentarei afastar as pedras para poderes caminhar, correr, voar livremente e feliz. Quero tanto que sejas feliz, que consigas ser feliz, que sonhes muito, que acredites, sempre, que os sonhos se podem tornar realidade, mesmo num Campo de Refugiados. Eu sei que vais ser um Ser Humano maravilhoso, um grande Homem. Meu O. do sorriso doce e meigo. O. dos olhos gigantes, dos olhos onde cabem o mundo. Eu vou estar, sempre, ao teu lado. Mesmo que esteja muito longe fisicamente. Prometo! E, tal como te prometi, numa das histórias que te contei, um dia levar-te-ei ao jardim mais bonito do mundo, a um jardim cheio de girassóis, onde vais poder correr e sentir o sol, o vento, a magia que só um girassol sabe dar a uma criança tão especial e única como tu. Obrigada. Obrigada, O