Durante aquele voo tive a certeza. Perdi o bebé, a muitos quilómetros de altitude, enrolada numa manta, sem chorar para não afligir a comitiva e destruída por dentro. Cinco horas de pura recriminação e culpa. O meu marido esperava-me, com um olhar magoado e desiludido. Não esqueço esse olhar.
Ontem foi dia de partilhas. No meu novo programa Júlia, três mulheres falaram de uma matéria muito dolorosa. Andreia Rodrigues, apresentadora da SIC, e Ana Casinha, uma convidada que aceitou sentar-se connosco para revisitar um período difícil da sua vida, falaram ainda com o coração em ferida, da perda dos seus bebés.
Andreia Rodrigues perdeu dois bebés, uma dor que ainda não ultrapassou, mesmo tendo os braços cheios com a sua linda Alice. Ana Casinha agarrou a corrente do fio do tempo para soltar na voz o lamento indignado desta dor, tantas vezes silenciada.
Houve lágrimas, silêncios e a revelação de que, como tantas vezes, o sorriso que mostramos ao mundo é apenas a tentativa de parecermos funcionais.
Eu juntei- me a estas duas mulheres corajosas. Eu também perdi um filho. Não é a primeira vez que falo no assunto publicamente, mas ontem a partilha foi tão intensa que me envolvi também nas minhas recordações. O tempo já me calou a perda, mas o dia em que a Andreia Rodrigues entrou no meu camarim, em lágrimas, desfeita, desprotegida e vulnerável, contando aos soluços o fim do seu sonho, remeteu-me para um momento idêntico, vivido por mim há 27 anos.
Na altura, eu não trabalhava num órgão de comunicação. Era assessora de imprensa de um ministério e viajava constantemente. Acompanha quase todas as deslocações de um ministro e três secretários de Estado, viva num turbilhão de afazeres com uma mala de viagem atrás. E, ainda assim, queria um segundo filho.
Quando engravidei, fui aconselhada a abrandar o ritmo e a diminuir as viagens. Não segui os conselhos, convicta de que tinha uma saúde de ferro. Já quase no final do terceiro mês de gestação, a minha agenda tinha um dossier importantíssimo para executar. A Comissão Europeia era então gerida semestralmente pelos seus países membros. E o meu bebé estava a desenvolver-se no semestre que cabia precisamente a Portugal. Fui informada de que passaríamos uma semana fora, uma viagem que começaria em Bogotá, seguida de Cartagena das Índias, a cidade anfitriã deste encontro tão importante, depois Washington, com passagem pela Casa Branca e finalmente Nova York.
Numa semana fiz mais de 10 voos. Protegida pelos meus colegas, sem pegar numa mala ou em pilhas de documentos e muito mimada. Era a mais jovem da equipa e estava grávida. Sempre bem disposta, sem nenhum incómodo.
A semana passou veloz. No último dia, em Nova York, comecei a suspeitar de que o meu bebé não estava bem. Quiseram levar-me para o hospital. O meu incansável ministro prontificou-se a ficar comigo, mas eu, teimosa e inconsciente, quis voltar para casa.
Durante o voo tive a certeza. Perdi o bebé, a muitos quilómetros de altitude, enrolada numa manta, sem chorar para não afligir a comitiva e destruída por dentro. Cinco horas de pura recriminação e culpa. O meu marido esperava-me, com um olhar magoado e desiludido. Não esqueço esse olhar.
Um ano depois, engravidei de novo. Vinha aí um par de gémeos. Já trabalhava na SIC . Fui a primeira grávida desta jovem empresa. Correu tudo bem. Mas não esqueci.
Não se esquece.