Dador de Medula

Medula óssea: para se ser dador, é indispensável doar

Recebi ontem um e-mail intitulado «balde de água fria», em que o remetente, um amigo com um familiar com pouco mais de 20 anos a viver uma situação oncológica (uma leucemia), desabafava sobre a desistência do dador de medula óssea compatível que havia sido encontrado há cerca de duas semanas.

Por João da Silva,
Jornalista e Palestrante, venceu três batalhas contra o cancro
Autor do livro «O sofrimento pode esperar»

O familiar do meu amigo, a quem vou chamar André, ficou absolutamente destroçado com a notícia da desistência. Imagino que tenha também ficado revoltado, angustiado, cheio de dúvidas sobre o futuro e, pelo menos durante algum tempo, com a esperança na cura – a tão fundamental esperança! – muito diminuída. É certo que pode ser encontrado outro dador compatível, e essa é a forma racional de pensar numa situação como esta, mas quem acredita que o André vai pensar de forma racional nos próximos tempos? Eu não.

Os problemas oncológicos, e neste caso a leucemia em particular – registe-se que para algumas pessoas que padecem desta doença, o transplante de medula é a única possibilidade de obterem uma remissão duradoura –, são situações imprevisíveis, que pese embora os avanços da medicina, nunca se sabe muito bem como vão evoluir. O que hoje está bem, amanhã não está. Mais: só quem já viveu o dia seguinte a um diagnóstico de cancro pode saber o quão angustiante é difícil acordar e sair da cama pela manhã com o peso dessa notícia aos ombros. E refiro-o porque vivi esse diagnóstico por três vezes. Imagino que o que o André sentiu no dia seguinte à renuncia do potencial dador tenha sido algo de muito semelhante. Posso usar uma imagem para o descrever: o chão foge-nos literalmente debaixo dos pés e, por mais que tentemos fixar-nos em algum lugar de abrigo, o chão teima em fugir.

Pretendo que esta mensagem seja o mais racional e simples possível. Consigo fazê-lo porque não estou na situação do André, tal como, felizmente, a esmagadora maioria de nós não está. E é por isso que aqui deixo alguns dados muito racionais que transcrevi da página de internet da Associação Portuguesa contra a Leucemia (APCL):

  1. Portugal regista anualmente cerca de 1.000 novos casos de leucemia. A leucemia não distingue idade, sexo, ou condição social, mas nas suas variantes agudas tem uma incidência particular em jovens e crianças.
  2. Uma elevada percentagem dos doentes com leucemia necessita de realizar um transplante de medula óssea como recurso terapêutico final que lhe assegure a sobrevivência.
  3. É desejável que o doador das células seja um irmão, porque entre irmãos é maior a probabilidade de encontrar um dador compatível – em média. Estatística, um em cada quatro irmãos é compatível.
  4. Quando o doente não tem irmãos, ou os irmãos não são compatíveis, procura-se encontrar um dador compatível fora da família. É possível, mas é muito mais difícil. Pode ser necessário pesquisar entre 100.000, 200.000, 500.000, ou mais de 1.000.000 de dadores. Daí a importância dos registos nacionais de dadores.
  5. Os registos nacionais estão ligados numa rede de solidariedade mundial, abrangendo hoje um universo de mais de 13.000.000 milhões de pessoas.
  6. Doar medula óssea não tem risco, nem acarreta sofrimento físico para o dador. É um gesto muito simples, e com esse gesto, uma vida pode ser salva.
  7. Deixamos a mensagem aos portugueses em condições de serem Dadores de medula: «dê o melhor de si: salve uma vida!»
  8. Muitos milhares responderam a este apelo. É ao seu espírito solidário que se deve o enorme sucesso europeu e mundial do registo português nos últimos 2 anos.

Os portugueses são muitas vezes referenciados internacionalmente como um exemplo a seguir no que concerne aos dadores de medula óssea, somando já mais de mil dádivas efetivas de células para doentes portugueses e estrangeiros. Recentemente, numa entrevista, o Professor Manuel Abecassis, Diretor do Departamento de Hematologia do IPO de Lisboa, que tive o privilégio de conhecer quando fiz os meus dois autotransplantes, referia que «são já cerca de 400 mil dadores inscritos em Portugal» e ainda que, no seu serviço, «dois terços dos transplantes efetuados em doentes com leucemias agudas são realizados com dadores voluntários». À pergunta sobre se há sempre recetividade quando o dador é contactado ou se o medo acaba por retrair a iniciativa, o professor Manual Abecassis respondeu de forma esclarecedora: «em mais de 95% dos casos, a resposta é favorável e o dador está disponível. Há alguns casos em que isso não acontece e as razões são múltiplas, como doença ou impossibilidade de contacto. Nunca aconteceu no nosso serviço uma situação em que a pessoa esteja em condições e tenha dito que já não quer fazer. Sei que já aconteceu noutras unidades, mas é uma situação excecional».

O caso do André é uma dessas situações excecionais. Congratulo-me com as situações normais e bem-sucedidas, mas preocupam-me muito as situações excecionais. Nem que fosse apenas uma já seria demais. Há uma responsabilidade moral e um compromisso que se assume no momento em que se preenche e assina o formulário para se ser dador de medula óssea.

Pergunto: sendo essa inscrição totalmente voluntária, o que leva alguém que se encontre perfeitamente bem de saúde e sem quaisquer restrições a desistir quando é contactado para salvar uma vida? Doar medula óssea tem que ser visto não como uma obrigação por se ter assinado um papel, mas sim como um momento de gratidão por um dia se ter disponibilizado para salvar a vida de alguém. Dizer que se está inscrito e que se é dador não chega, para se ser dador é indispensável doar!

Tento não julgar ninguém pelos seus atos. Tento também racionalizar sempre as adversidades da vida. Mas a verdade é que nem sempre consigo fazê-lo. E certamente não o consigo, nem o quero fazer, quando está em causa uma vida humana.

 

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João da Silva, autor de O Sofrimento pode esperar

João da Silva
Jornalista, autor do livro «O sofrimento pode esperar» e palestrante
Agendamento de palestras e aconselhamento de desenvolvimento pessoal

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