Imaginem o cenário dantesco: quatro filhas prisioneiras de um pai esquizofrénico e que lograram escapar e procurar a normalidade. Duas delas estiveram ontem ao meu lado. Têm nomes lindos, Maria do Céu e Maria do Mar.
Viveram num clima de terror psicológico até quase ao final da adolescência e, ontem, a mais velha disse-me com uma candura extrema que acreditou na sua liberdade no dia em que a Mãe entrou na sala, no dia 25 de Abril de 1974, e informou pai e filhas de que o governo tinha caído.
E nesse momento, ela acreditou, pela primeira vez, que o governo lá de casa também poderia cair. Viviam na abundância, mas com os estores descidos, não podiam comer nada que o pai não tivesse antes autorizado.
Era proibido beber água e Maria do Céu, em muitas noites, tinha tanta fome e sede que enrolava bocados de papel higiénico molhado com saliva, escondido na base de imagem da Nossa Senhora de Fátima, e pela calada da noite, mascarava a fome e a necessidade de líquidos, bebendo a saliva que tinha armazenado durante o dia.
Tinham que relatar ao pai o que pensavam e até o que sonhavam. Não podiam sair dos quartos durante a noite, nem mesmo para ir à casa de banho. O pai marcava as portas para ver o que elas faziam. Não imaginem que isto é um romance gótico do final do século 19. Aconteceu em Linda a Velha, durante os os anos sessenta. E ainda assim, sorridentes e cheias de luz, afirmaram que o pai não era um monstro. Raramente vi seres tão luminosos. Adorei-as. O meu dia ficou cheio de luz. Obrigada.