Livro é lançado hoje, com apresentação de Catarina Furtado.
Duarte Valle de Castro tanto insistiu que um dia, já prestes a desistir da ideia de partir em missão, foi surpreendido pela reação da sua mulher Matilde: “se queres mesmo muito, investiga, vai ver isso”.
Duarte não precisou de investigar durante muito. Passado um ano, o casal estava de malas feitas com destino a Timor-Leste, integrados numa equipa dos Leigos para o Desenvolvimento, um projeto que a pedido de padres jesuítas, encontra-se de pé, em Timor, desde 20o2, o primeiro ano da independência do país.
“O tempo e a vida encarregaram-se de imprimir algum realismo àquela ideia, mas facto é que para o meu lado veio uma mulher que, embora de início refutasse totalmente uma partida em missão, soube amar-me ao ponto de fazer nosso o meu sonho.”
in Em Timor, Histórias de um casal em Missão
Faz precisamente 10 anos que Duarte abandonou o seu emprego na área de consultoria em Portugal e que Matilde despediu-se da empresa de organização de eventos. Decidiu a organização não governamental que, em função da disponibilidade e formação de ambos, iriam apoiar a comunidade timorense.
Duarte passou um ano a trabalhar em micro-crédito, fazendo visitas a clientes.
“Em Railako existe um grupo de clientes do microcrédito e hoje é dia de visita. Vamos a casa de cada uma das clientes para saber como correm os seus negócios (…). No momento da despedida, depois de nos despedirmos do esposo meu homónimo, a cliente acompanha-nos educadamente ao carro, levando dois dos filhos pela mão. Sinto que visitei uma família feliz, mas não posso senão questionar isso. O chão da casa não tem chão. Tem terra. A casa não tem teto, apenas umas placas de zinco a fazerem de telhado. A família não tem água canalizada, e todos os dias reparte entre pais e filhos a tarefa de ir buscar água. Porque é que uma família há de ser feliz assim? Porque é que uma família pode ser feliz assim?
Entramos no carro, onde o Amanti nos espera. Resolvo seguir na caixa aberta da carrinha, sozinho. Seguimos pela mesma estrada e vou olhando à minha volta. Que sítio é este? Onde estou eu? Onde é que eu vim parar? Rodeiam-me montanhas com um verde denso e alto. Árvores que nunca vi; várias e de diferentes espécies. Não sei se se abraçam ou se se degladiam, competindo para chegar mais alto. Entrelaçam-se. Como me abstraí já do som do carro, consigo ouvir melhor os vários sons dos pássaros. Soa a selva. A selva deve ser assim.”in Em Timor, Histórias de um casal em Missão
Matilde foi professora de uma escola, em Bazar Pepe, nos arredores de Timor, onde as crianças chegam após atravessarem descalços os solos montanhosos. Uma delas revelava capacidade de poder ir mais além. Matilde e Duarte continuaram a seguir-lhe o rasto, apoiaram e certificaram-se de que iria continuar a estudar. E a verdade é que há, pelo menos, um menino do grupo de pés descalços que hoje estuda Direito em Díli.
Há muitas mais histórias para contar. Um ano de Timor dava um livro. E Duarte pôs-se um dia a escrever. Nos seguintes, continuou.
“Fui então percebendo que era isto que tinha de ser feito. E hoje sei que aquilo que fui fazer para Timor se conclui com a escrita e apresentação deste livro. Pretendo, com ele, partilhar com quem quiser saber, aquilo que para lá fomos fazer, bem como as razões que nos levaram
a ir. Não tive a pretensão de ser totalmente rigoroso nos factos nem de relatar ao pormenor cada um dos dias vividos por mim em Timor. Quis, sim, deixar escrita a forma como eu vivi a minha missão, procurando respeitar todos aqueles sobre quem escrevi.”,
in Em Timor, Histórias de um casal em Missão
Nas páginas do seu livro, Duarte retrata “um país jovem, que saiu de uma repressão brutal para aprender a ser país. Estão a construir uma democracia e com mérito têm conseguido manter a paz. Mas as dificuldades ainda se fazem sentir. Há muita pobreza (que raras vezes toma a forma de miséria, pois o espírito comunitário funciona), e muitos bens não chegam a todo o país – água canalizada, eletricidade. Na nossa experiência apercebemo-nos da capacidade de adaptação do homem. É possível viver e ser-se feliz com muito menos do que temos cá. Mas é bom que os decisores timorenses consigam caminhar para um desenvolvimento necessário e que esse desenvolvimento chegue a todos”.
Os dias do casal em Timor mostram as dificuldades das casas sem teto nem chão, dos banhos matinais de púcaro em punho, à falta de água canalizada. Mas também revelam jantares com amigos timorenses e crianças, sempre o barulho de crianças como som de fundo.
“Em três dias é incontável o número das crianças que passam a fazer parte do nosso dia-a-dia. Demorarei tempo a perceber o tanto que contém o sorriso duma criança timorense. Elas as três criam mais facilmente relação com as meninas, ao passo que eu, através de uns pontapés na bola e de macacadas várias, vou cativando os rapazes. Para já fixei o nome de dois, ambos de sete anos: o Gildo e o Amir.”
in Em Timor, Histórias de um casal em Missão
Amir é o jovem da imagem de capa do livro Em Timor, Histórias de um casal em Missão. Amir tinha cerca de oito anos e fazia parte do grupo de crianças que acompanhava o casal de voluntários nos passeios e banhos de praia. Duarte recorda que, naqueles momentos salgados de traquinice, eram crianças felizes. Amir tinha contudo uma particularidade. Não comunicava com adultos. Duarte nunca lhe ouviu uma única palavra. Até ao momento da sua partida. “‘Estou triste’, foram as únicas palavras que ouvi Amir pronunciar em um ano. Aquilo marcou-me”, recorda Duarte.
Uma outra história que conta no livro: “um dia, o telefone de casa tocou às 9 da manhã. Era uma amiga minha, timorense, a pedir-me aos berros que fosse ter com ela. Sem ter percebido a urgência fui, e quando cheguei vejo o cadáver do seu bebé de 1 ano numa mesa, com os rituais normais que fazem quando choram os mortos. A criança não tinha sofrido nada de aparentemente especial. Estava indisposta e morreu desidratada, porque no hospital não a trataram adequadamente. A pessoa que esta mulher chamou no primeiro momento fui eu. Até hoje continuo a perguntar: ‘porquê eu’. Quando cheguei pediu-me para chamar um padre seu amigo, para ir ter com ela e rezar a criança morta, ajudá-la no luto.”
Duarte Valle de Castro, 37 anos, Corporate Banking e Matilde Trocado, 37 anos, encenadora de musicais, têm atualmente três filhos, a Marta, com oito anos, o José Maria de seis, e a Verónica, com seis meses.
Não hesito em fazer-lhes a última pergunta: o casal que partiu é o mesmo que regressou?
“O que somos hoje somos, tendo tido esta experiência. A experiência, com tudo o que teve de dádiva, adaptação, compromisso, terá ajudado o casal que somos hoje em muitas dimensões do casamento – mesmo até a fazer por viver com simplicidade, tendo claro o que é necessário e o que é supérfluo – e acredito que a educação que damos aos nossos filhos é também marcada por esta experiência. Vão percebendo que aventura foi esta e, principalmente, os motivos que levaram os pais a partir. Isso vai munindo-os de critérios para as decisões que vão ter de tomar nas suas vidas”, responde Duarte.
Duas experiências curiosas em Timor:
“É melhor pisar a barata antes que ela levante voo.
Se muito condimentada, nem percebemos que aquilo que estamos a comer é mesmo carne de cão.”