Ninguém esquece facilmente o autor do célebre acórdão do juiz do Tribunal da Relação do Porto que desvalorizou uma agressão grave praticada pelo marido contra a “mulher adúltera”, como assim lhe chamou. Estávamos em 2017.
Agora, o juiz Neto de Moura volta aos jornais, desta vez pela decisão que tomou em Outubro passado relativamente ao homem que rebentou o tímpano à mulher, e ao qual o magistrado retirou a pulseira eletrónica. Esta medida tinha sido aplicada pelos colegas de primeira instância, para garantirem que o agressor não voltaria a aproximar da vítima, e foi decidida depois de o terem condenado a uma pena suspensa. Mas Neto de Moura considera “severa” demais a pulseira eletrónica.
Crónica de Magda Fernandes, sobre o assunto na ordem do dia
Ver se entendo: tímpanos podem ser rebentados ao soco, mas pulseiras eletrónicas são severas demais?
Sou advogada. Sobretudo de direito da família. É uma carreira dura, vê-se de tudo e as pessoas mostram o pior de si. Às vezes o melhor também. Sirvo de psicóloga e de mãe e de padre também. Por acaso, também sou mulher. Não sou feminista e até me irrita em tese que o sexo feminino ainda seja visto como o sexo mais fraco. Isto porque esses tempos, na minha consciência da sociedade em geral, supostamente, já eram: as mulheres têm carreiras, gerem-nas enquanto têm filhos e consultas e roupa da casa. E gerem-nas bem.
Essas mulheres, fortes e auto-determinadas, não representam contudo todas as mulheres. Embora tenham feito longo percurso para na atualidade darem força a outras tantas mulheres, menos fortes, menos auto-determinadas, com menos recursos.
E quando andamos – as mulheres – a tentarmos apoiar-nos umas às outras, aparecem por aqui umas decisões judiciais que não lembram a ninguém e que nos fazem sentir que regredimos ao século passado.
Sou advogada, como disse, com grande respeito pela magistratura: juízes, funcionários, defensores da justiça.
Mas respeito é coisa que se conquista, não vem com a “beca” (o traje) que vestem nem pelo facto de se sentarem no púlpito em tribunal a ditar sentenças.
Dito isto, vamos ao caso: um magistrado destes tribunais vem produzindo de forma consistente e repetitiva Acórdãos a propósito de casos de violência doméstica que merecem um apontamento. Entender que um ato de violência doméstica é justificado se for exercido por um homem sobre uma mulher, até porque no século passado as mulheres eram vistas como objetos, já era mau. E mereceu uma sanção ao dito magistrado que até, a meu ver, não foi severa o suficiente.
É que, se de alguma coisa devem servir as sanções, é para não cometermos os mesmos erros.
Mas não, neste caso não. Porque o mesmíssimo magistrado entendeu agora que um homem que rebentou um tímpano de uma mulher ao soco não tem de usar uma pulseira eletrónica. Uma pulseira eletrónica é, a ver do magistrado, uma medida severa demais.
Ora bem: fico sem entender e já levo uns anos disto: em que medida é que usar uma pulseira que identifique onde pára um agressor – sobretudo para evitar aproximações à vitima – lhe é severo demais?
Faz-lhe comichão no pulso?
Não o deixa ter a sua vida e ir para onde lhe apetece? Nomeadamente, não o deixa reaproximar-se da mulher que agrediu?
Diz o ilustre magistrado – está provado que o arguido não mais se aproximou da vítima. Mal seria, com uma pulseira eletrónica. E quando for retirada, pode o magistrado assegurar que não volta a acontecer?
É que se o agressor, por força da liberdade que lhe é dada, se sentir tentado a rebentar o outro tímpano da vitima ao soco, talvez seja de ponderar se as sanções a aplicar em casos destes a quem profere decisões desta envergadura não devem efetivamente ser mais “severas” do que o são.
Porque a única coisa severa que vi aqui mesmo digna de proteção foi o tímpano rebentado ao soco.
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