“Eu era uma criança gorda e com o apelido Bacalhau. Era vítima de bullying. Não sabia como reagir. Hoje já sei como ensinar a minha filha a defender-se”, Ana Bacalhau

Ana Bacalhau regressou com um novo single: ‘Erro Mais Bonito‘, cantado em dueto com Diogo Piçarra“, que também realiza o videoclipe, é o ponto de partida para uma boa conversa.

Qual é o erro mais bonito deste Erro Mais Bonito

As pessoas não esperavam que a Ana e o Diogo se juntassem para cantar. E esta singularidade aconteceu e está a correr da melhor forma. Ou seja, eu considero que o sucesso – para lá das visualizações e dos números  – depende do facto de eu e o Diogo desfrutarmos muito enquanto cantamos a canção e também da reação que vemos nas pessoas, quando cantamos. As pessoas aproximam-se de nós e falam-nos da forma como a canção as afetou. É assim que meço o sucesso, pela forma como sinto que a canção teve um efeito positivo na vida de alguém. E nesse sentido, eu julgo que este Erro Mais Bonito está a ser uma singularidade acertada, bonita.

 

Ana Bacalhau destaca a forma como Diogo Piçarra abraçou este desafio!

Antes da música, vamos à escrita, uma das tuas paixões de infância. E tu ainda és do tempo da máquina de escrever…

Sim, a máquina de escrever foi um dos melhores presentes que recebi. Eu tinha oito anos quando os meus pais me ofereceram a máquina de escrever. Lembro-me de, nesse dia, um dia de escola, ter acordado às 5 da manhã para ficar a escrever na minha máquina. Adorava o som da máquina… bati à máquina até ao terceiro ano de faculdade.

Antes da música, a escrita era a minha forma de expressão. Gostava de escrever histórias, construir novos mundos e histórias muito melhores que as do meu mundo real, que não era muito simpático. Eu era vítima de bullying…

O bullying estava relacionado com o teu peso na altura…?

Com o meu peso e com o meu nome. Eu era uma criança gorda e chamava-me Bacalhau. Portanto, era o regabofe. E eu na altura não sabia como reagir. Hoje já sei como ensinar a minha filha a defender-se: ela tem dois apelidos – Bacalhau Leitão. Além de que é filha de duas figuras públicas.

Quando gozam connosco temos de desvalorizar e não dar a entender que fomos atingidos. E os bullies perdem a vontade de continuar a gozar. Mas eu era transparente, mostrava que os comentários me afetavam. E durante toda a primária e secundário fui alvo de bullying. Apenas no secundário percebi que a singularidade do Bacalhau era fixe. Não era um drama. E então abracei o meu apelido como nome artístico e comecei a pegar na guitarra. A escrita é excelente, mas isola-nos. Já a música é uma comunhão, permite-nos estabelecer laços e comunicar. E por isso foi muito importante para mim, permitiu afirmar-me. A música é uma terapia.

Achas que hoje o bullying é mais cruel?

Sempre foi cruel. Acontece que antes, o bullying que existia nas escolas acabava quando terminava a escola ao final do dia e as crianças voltavam para a sua casa. Hoje há redes sociais. E what happens in the net stays in the net. Hoje, as pessoas e até estranhos fazem comentários cruéis via internet que ficam para sempre. Hoje, o ataque é por isso constante, não há espaço para respirar. O fenómeno é o mesmo mas a crueldade é maior.

Esta é uma das tuas causas?  

A minha causa primeira, e que depois de desdobra em todas as outras, é: cada um deve ser livre para ser quem é. Infelizmente o mundo nem sempre nos deixa ser quem somos.
As causas a que me associo tem a ver com poder ajudar alguém a libertar-se dos “fatos” muitos apertados em que nos colocam, ajudar alguém a ser quem é. Eu costumo dizer que prefiro ser odiada por quem sou do que ser amada por quem não sou.

Foste convidada para representar Portugal numa canção da ONU para o Dia da Mulher. Como aconteceu este convite?

O convite surgiu através do Jerry Boys, que foi produtor do terceiro disco dos Deolinda. Ele era o responsável por selecionar as cantoras de cada país que iriam integrar aquela canção. Ele achou que eu seria uma digna representante do meu país e eu aceitei fazer parte daquela comissão que procura promover a igualdade de direitos e que trabalha no terreno para que as mulheres de todo o mundo possam ter acesso à sua liberdade. No Ocidente ainda há muito a fazer, mas lá fora há muitas mulheres que não têm direito ao mínimo. E o mínimo é o respeito pelo ser humano – quando nascemos, antes de mais somos seres humanos, só depois somos mulher ou homem.

Voltemos à música, a guitarra começou por ser também a tua causa… 

Eu adorava os Guns N’ Roses. Mas quando cantava por cima do Axel (vocalista), achava que a minha voz não era boa, não prestava. Influenciada pelo Slash (guitarrista dos Guns), pensei: vou mas é tocar guitarra, até porque não há mulheres guitarristas com visibilidade. Essa vai ser a minha causa, decidi. Havia já uma pequena feminista em mim (risos). Quando fui aprender a tocar guitarra, percebi, porém, que não tinha talento. Não seria eu a trazer a bandeira das mulheres a tocarem instrumentos, digamos, mais associados aos homens.

O Slash conta que, no início da sua carreira, muita gente chegou a aconselhá-lo a desistir pois já havia muitos guitarristas… Também ouviste comentários menos motivadores por teres optado pela música?

Até os meus pais me disseram que seria muito difícil e que o melhor seria pensar noutra carreira. A verdade é que há uma luz dentro de nós que, quanto mais a tentam apagar, mais ela cresce. Comigo é assim: quanto mais me dizem que não consigo, mais eu penso que é isso mesmo que vou fazer. Tenho essa “coisa” da irreverência. Por isso é que sou uma rocker de alma.

Quando eu percebi que tinha voz, decidi: é mesmo por aqui que eu vou. Muita gente dizia que não iria acontecer. Mas aqui estou eu a provar o contrário. O “erro” e o “não” são as coisas mais importantes, pois são eles que vão distinguir quem somos. Ou nos conformamos, ou somos tenazes e chegamos onde queremos.

Disseste um dia que te imaginavas a cantar Deolinda até ser velhinha. Tens saudades dela?

Ainda não há um distanciamento para ter saudades. Na Deolinda cantava o outro. Agora está a dar-me um gozo imenso partir desta matéria prima que eu sou para chegar aos outros. A Deolinda era uma casa confortável onde conhecia os cantos. Agora estou a aprender. E eu gosto deste processo. E como está a dar-me muito gozo, não tenho esse espaço ainda no meu coração para as saudades. Além disso, num concerto ou outro vou cantando Deolinda. Lá está, vou cantar Deolinda até ser velhinha. As canções Deolinda fazem parte do meu percurso e da ligação emocional que as pessoas criaram comigo.

O processo de aprendizagem também terá acontecido com a maternidade. Quem é a Ana Bacalhau mãe?

Sim, a maternidade é todo um estremecimento. A maternidade é um processo sempre em construção, estamos sempre a adaptar-nos às suas diferentes fases e necessidades. Quando eles nascem são completamente de nós e depois vão libertando-se de nós e sendo cada vez mais eles. Para mim, a maternidade é esse apoio que nós vamos dando e que primeiro passa por um abraço, depois um colo, depois é só uma mão, um dedo, até que passamos apenas a amparar-lhe as costas. Se caírem, nós estamos lá para os apanhar. Depois, é uma palmadinha – voa, anda para a frente. Eu sou fiel ao que acredito: eu não quero um filho para que seja meu, eu quero que a minha filha seja dela própria.

Com é que tem sido conciliar a carreira na música com a maternidade?

Eu costumo dizer a quem não tem filhos: pensem no dia em que se sentiram mais cansados na vossa vida e multipliquem esse dia por 20. Esse é o dia normal de ser mãe (risos). É realmente muito exigente. Educar uma criança é uma atividade muito intensa e que exige muito de nós.  Conciliar o trabalho criativo da música com estar com uma criança é difícil. Mas ao mesmo tempo é muito recompensador.

A tua filha chama-se Luz…
Porque há muitas Luzes na família e, de facto, é um nome acertado. Ela é uma criança muito luminosa.

Por fim, e a Ana Bacalhau quem é?
Sou alguém que está sempre a tentar equilibrar uma visão mais madura do mundo mas mantendo a minha espontaneidade. E acho que estou a conseguir fazer esse equilíbrio da idade, que nos traz a sabedoria de como as coisas são realmente e aquela Ana que achava que podia mudar o mundo e via sempre o bom das pessoas. Essa Ana ainda sou eu.

 

"Eu era uma criança gorda e com o apelido Bacalhau. Era vítima de bullying. Não sabia como reagir. Hoje já sei como ensinar a minha filha a defender-se", Ana Bacalhau ana-bacalhau

É mais um projeto recente de Ana Bacalhau. O álbum tem o formato de livro e inclui canções de roda, lengalengas infantis e três histórias escritas e ditas por Ana Bacalhau, Sérgio Godinho e Vitorino.

 

Uma receita de Ana Bacalhau, a preferida dos seus convidados lá de casa: Crumble de Maça e Frutos Vermelhos (receita aqui)
“A cozinha é também uma forma de amor”, diz Ana.

"Eu era uma criança gorda e com o apelido Bacalhau. Era vítima de bullying. Não sabia como reagir. Hoje já sei como ensinar a minha filha a defender-se", Ana Bacalhau Crumble-Ana-Bacalhau-1

 

 

Foto Ana Bacalhau: Instagram

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