“O meu pai parece um monstro. Isto é um crime público, mas as vítimas de violência doméstica não são protegidas”, Alice

Alice escreveu-me este desabafo. Com muita dificuldade, refere. Pedi-lhe autorização para publicar o seu testemunho. Protegendo o seu nome verdadeiro e a sua identidade. Alice, que não é Alice mas que representa um vasto universo de “Alices”, aceitou. Com medo. Mas com esperança de que o seu grito encontre uma saída.

Ao testemunho de Alice, acrescentamos o comentário da APAV, que contactámos e que mobilizou-se para voltar a ajudar este caso de forma imediata e urgente.

503 mulheres foram mortas em contexto de violência doméstica ou de género entre 2004 e o final de 2018. E o número não pode continuar a aumentar.

“Não, nunca chamei a GNR. Para quê? Liguei-lhes e o agente respondeu-me que teriam que chegar a casa e ver o meu pai a bater na minha mãe, caso contrário não iria adiantar irem lá.”

“O meu pai parece um monstro. Isto é um crime público, mas as vítimas não são protegidas. Não há ajudas concretas.”, Alice (nome fictício)

Escrevo este testemunho com muita dificuldade e motivada pelos testemunhos de violência doméstica que vi no programa Júlia.

Tenho 33 anos e durante 33 anos vivi de perto  a violência doméstica. Decidi “fugir” com o meu namorado para Inglaterra, onde me encontro há quatro anos. Tenho 33 anos. Mas as memórias continuam bem presentes: desde sempre que ouço as ameaças de morte do meu pai, dirigidas à minha mãe. ‘Vou cortar-te o pescoço.’ ‘Vou dar-te um tiro nos olhos até te saltarem as órbitas.’ Ele chamava-lhe mil nomes. Sempre achei que um dia iria matá-la. Ainda não aconteceu. Ele sabe que ela tem medo, que não tem para onde ir e que por isso faz tudo o que ele quer. A mim, mantinha-me fechada em casa. Eu era uma boneca. Nunca fui tratada como filha. Tenho estas memórias bem presentes. Traumas, muitos traumas causados por esta violência psicológica, com a qual hoje procuro lidar com a ajuda de um psicólogo português, com quem faço terapia via skype. Não, nunca chamei a GNR a casa. Que adiantaria? Liguei-lhes e o agente que me atendeu respondeu-me que teriam que chegar a casa e ver o meu pai a bater na minha mãe, caso contrário não iria adiantar irem lá.

APAV? Também já levei lá a minha mãe. Mas as coisas são tão complicadas que não deu em nada. Para a APAV, arranjar um advogado demorava muito tempo e, disseram-nos, só havia casas de abrigo no norte, sendo que poderia nem haver vagas. Fazer mais queixas, como? Se depois a minha mãe tem que voltar para dormir em casa? 

A situação é cada vez mais grave, e não consigo controlar o meu pai de forma nenhuma.

A minha mãe continua lá, em casa, fechada, sem poder usar dinheiro, sem puder usar meios de comunicação nem redes sociais. Tem horas para chegar a casa sempre que se ausenta para fazer uma compra. Uma vez tentei que fosse ao psicólogo, mas ela teve medo que o meu pai descobrisse e cancelou a consulta. Tenho emails que troquei com o psiquiatra do meu pai – mas de nada adiantam. Chegámos também a falar por telefone: disse-nos que precisaríamos de acompanhá-lo e dizer em consulta o que se passava – o meu pai começou a ser seguido por um psiquiatra quando teve uma depressão há 10 anos. Tomava os medicamentos e bebia, tornou-se ainda mais insuportável. Mas não o acompanhámos às consultas – eu tive medo de agravar ainda mais a situação. E o psiquiatra deu-lhe alta, mesmo tendo conhecimento do que se passava.

Em breve quero regressar, não definitivamente, a Portugal. Mas a aproximação de casa não é fácil. Pelo facto de ter defendido a minha mãe, o meu pai diz que deixei de ser filha dele… isto e mais coisas que não quero repetir.

Mas a questão não sou eu – o que está em causa é a segurança da minha mãe. O que posso eu fazer? Financeiramente, tudo o que lhes dou, o meu pai gasta em tabaco. O meu pai parece bipolar, tem ataques de fúria, a língua toda a enrolar….Parece um monstro.

Eu quero ajudar a minha mãe, mas não sei como. O desespero é muito. Trata-se de um crime publico, mas as vítimas não são protegidas, e não há ajudas concretas.

Podem apontar-me alguma direção?  

Leia aqui o comentário da APAV que, ressalvando o facto de não se pronunciar quanto a casos concretos, partilha os procedimentos e a ajuda que disponibilizam nestas situações.

 

 

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