Famílias em Construção

Famílias em Construção, A Escolha é Minha

Famílias em Construção é um livro de Margarida Fonseca Santos. 

É um retrato de histórias que podia ser a sua, a minha ou a de alguém que conhecemos. São famílias em construção, frutos de divórcios nem sempre bem ultrapassados. Crescer é um desafio enorme. E é disso que fala a autora neste livro, partilhando caminhos e opções que temos de tomar todos os dias.

Partilhamos aqui as primeira páginas deste livro consigo. Obrigada à Editora Fábula.

«Se não gostas de alguma coisa, muda-a. Se não podes mudá-la, muda a tua atitude.»
Maya Angelou

 

Clara
— Quantos dias tenho de cá ficar? Foi com este estilo que entrei em casa do meu pai e da Patrícia, a minha inimiga número um. Também tinha um inimigo número dois: o estranho filho dela, o Miguel. Achava- se muito mais velho só por ter mais 10 meses de idade e andar no 10.º ano. Adorava ler, e eu achava que, só por isso, já tinha motivos para desconfiar dele. Quem podia dizer que gostava de ler sem parecer um anormal?! Eu só lia quando me obrigavam na escola e, enquanto o fazia, saltava páginas a toda a hora.
Ao que parecia, o Miguel era apaixonado por livros e,
pior ainda, o meu pai achava isso muito bom,
e dizia que eu devia aprender com ele. — Então, Clara? É um fim de semana prolongado, vai ser uma excelente oportunidade para nos ficarmos a conhecer melhor. Vamos passá- lo juntos, os quatro, em família. — Família?! Tu és o único da minha família — rosnei, virando- lhe as costas e atirando a mochila para cima da cama do quarto que me fora destinado. Ter ouvido a voz da Patrícia logo a seguir deixou-me furiosa: — Não lhe ralhes, vamos avançando aos poucos. É natural… Podia ter fechado a porta nesse instante, com estrondo, para os avisar de que lhes ia fazer a vida negra e como estava empenhada em provar- lhes que não eram da minha família. Mas depois lembrei-me da conversa com a avó e acalmei- me. — Não ganhas mesmo nada com essas atitudes, Clarinha — dissera- me a avó Florinda, quando lhe contei que, no dia em que conheci a Patrícia, quase não lhe falei e estive sempre com o meu ar enjoadinho número três, o especial para comunicar ao mundo que certa pessoa não me interessava. — Até parece que não gostas do teu pai. — E tu, avó, gostas? Ele abandonou a tua filha! — Não foi nada disso. Ninguém abandonou ninguém, foi uma decisão tomada em conjunto, não inventes. Andavam a adiar a separação há muito tempo. Tu sabes que havia problemas, não se davam bem… — Então escusavam de ter tido filhos! — Que disparate. Então e eu? Ficava sem a minha
Clarinha? Como podes dizer uma coisa dessas? Tu não és assim! E mais: considero o teu pai como meu filho também, não te esqueças disso, gosto muito dele. Abracei -me à avó Florinda. Não por saber como gostava do meu pai, mas porque também não imaginava a minha vida sem ela. E, numa ingenuidade muito pouco própria da minha idade, achei que havia uma solução simples: — Ó avó, e se eu viesse viver contigo? Só contigo. Quer dizer, a mãe também podia vir, ou depois estragava as contas da guarda partilhada? Não sei… era melhor do que andar com as mochilas, os livros da escola, o equipamento da ginástica, tudo, sempre de um lado para o outro. Ficavas tu comigo. A minha avó sorriu e só comentou que era natural alguma revolta, mas que seria passageira, tudo ficaria bem. Não acreditei. — Filha? — Saltei para o presente, para a casa onde havia uma Patrícia e um Miguel. Lá vinha o meu pai pôr água na fervura. — Não podes fazer um esforço e ser mais simpática com a Patrícia e o Miguel? Fazes isso por mim? — Por ti, faço. — Fui tão agressiva ao pronunciar esta frase que até me arrepiei. — Mas espero que não inventes mais fins de semana em família. Por muito que me digas que estou a pensar mal, esta não é a minha família. O meu pai saiu do quarto sem comentar estas palavras, como se não houvesse resposta para me dar. Fiquei cheia de remorsos. Detestava quando ele ficava só triste, sem falar. Vê -lo calado fazia- me sentir um peso no coração. E eu não tinha culpa daquilo, recordei, não tinha sido eu a mandá- los divorciar! Tolice… nem eu aceitava essa desculpa esfarrapada! Quando estavam a discutir horas a fio era terrível. Fechei a porta do quarto devagar. Sentei- me na cama e irritei -me ainda mais: via -se o mar daquela janela. A Patrícia pensara que eu iria gostar da vista sobre o mar, mesmo estando muito ao longe, e escolhera aquela divisão de propósito para ser o meu quarto. E eu, a irritante- mor, gostei. Detestava ter uma vida repartida.

Miguel
Que miúda mais insuportável! As minhas suspeitas estavam a ser todas confirmadas. Nem se lembrava de que havia outras pessoas na mesma situação, como eu, por exemplo, que estava bem pior do que ela. Ao contrário da Clara, eu não podia ir para casa do meu pai nos fins de semana grandes, nem nos médios ou pequenos. Ele fora trabalhar para Inglaterra por ser cientista, porque lá podia descobrir coisas que em Portugal não conseguiria por falta de verbas e equipamentos. Não devia ser verdade. Acho que foi para lá porque o casamento rebentou por causa de uma colega por quem se apaixonou. Só pensava em ficar longe da minha mãe. Se calhar nunca gostou a sério
da mãe, talvez fosse isso. «Comigo não se preocupou», era o pensamento que me visitava ao recordar o meu pai. Ouvia a Clara a fungar no quarto ao lado. Passara pouco tempo para ela, tudo era recente, e talvez isso explicasse tanto desatino, má criação e nariz empinado. Também passei por essa fase. Não durou muito, porque o meu pai foi para Inglaterra pouco depois. Eu só tinha 7 anos quando aquilo aconteceu. Não andei de um lado para o outro, um dos lados saíra pura e simplesmente do meu mapa
familiar. Não conseguia gostar da Clara. Só viria de vez em quando, mas, nas vezes em que estivemos os quatro, tratava a minha mãe com frieza e ignorava‑me. Gozava com os livros que eu lia, achava ‑me um anormal só porque o futebol não me dizia grande coisa. Como eu jogava andebol e era muito bom ao ataque, a Clara decidira que isso era mais uma prova da minha esquisitice. Discutimos todo o jantar. A minha mãe não gostou e ralhou- me, disse que eu parecia uma criança a provocar a Clara. Uma injustiça, ela provocava-me muito mais do que eu a ela! Só sabia pôr defeitos em tudo: o assado estava seco, não gostava de salada com passas, não comia sopa, não queria doces, enfim, foi com certeza para a cama com fome. Nem sequer passou o serão connosco. Íamos ver um filme escolhido de propósito para a Clara e a menina disse que estava cansada. Bom, também levei algum tempo a habituar- me à ideia de ter um padrasto. Também o fiz sofrer, mas não fui tão infantil como a Clara. Agora o ambiente em casa era muito diferente do que eu recordava. O meu pai não tinha grandes sentimentos por nós, acreditava eu, ou, se tinha, não os demonstrava.
Do que me lembro da vida a três, quase não reparava em nós. Andava sempre enfiado no laboratório em experiências, sem horários e sem fins de semana, e as discussões começavam muitas vezes por causa das suas ausências. Eu não guardara boas memórias desse período. Sabia que, quando os via discutir, o meu coração batia muito depressa e quase me faltava o ar. Ainda
me acontecia isso agora: quando via um casal a discutir, disparava um alarme no meu coração e punha -me a procurar crianças à volta. Havia coisas difíceis de esquecer. O Francisco não era como o meu pai, isso era evidente. Mas eu estava muito habituado a sermos só os dois em casa, eu e a minha mãe. Sabia -me bem que as coisas ficassem como estavam. O meu pai vinha de vez em quando a Portugal. Passávamos uns dias juntos, sem muito para dizer um ao outro, pois começava a ser um estranho para mim. Regressar para a minha casa, com a minha mãe, o meu quarto e as nossas conversas normais era um grande alívio. Quando o Francisco começou a namorar a minha mãe, não me passou pela cabeça que chegassem a ponto de viverem juntos. Mas, na verdade, tive sorte, porque o Francisco respeitava muito o meu espaço e até podíamos ter conversas interessantes sobre livros. Talvez por isso, só o massacrei com birras e ciúmes durante umas semanas. Se o Francisco se tivesse irritado comigo, a coisa teria descambado, iria odiá- lo. Só que o namorado da minha mãe era uma pessoa decente, sossegada, muito educada, paciente, e eu não podia continuar naquele disparate. Isso também caíra como uma bomba na cabeça da Clara. Não suportava que eu me desse bem com o seu pai. Ainda vinha com os tiques de filha exclusiva, e declarou guerra à minha mãe e a mim. Se pudesse, fuzilava- nos com palavras. Não, não: o pior eram os olhares que nos dirigia, sobretudo quando achava que ninguém iria reparar. Olhei para o relógio: eram quase 2 da manhã e a miúda continuava a chorar. E se fosse lá ao quarto? Não, podia ser ainda pior. Acabei por adormecer antes de o choro parar, não me lembrava de mais nada.

(…)

 

Familias em Construcao (003)

Comentários

comentários