Famílias em Construção é o tema do seu novo livro
Não é fácil apresentar Margarida Fonseca Santos. Como descrever uma mulher que enfrenta os 59 com o substantivo “aprendizagem” e o verbo “agitar”? Margarida Fonseca Santos tem formação musical e começou a escrever em 1993, tendo sido o seu trabalho distinguido desde então com prémios literários. Um dos seus romances, De zero a dez, dá-nos a conhecer a vida no silêncio da dor crónica, através da personagem Leonor. A autora, que conhece no próprio corpo esta dor invisível, dirige-se a uma grande parte das pessoas que sabe pouco sobre um assunto tão urgente e real. Numa escrita clara e concreta, Margarida quer mostrar caminhos. Umas vezes, promovendo a informação e o debate, outras vezes, trabalhando a curiosidade e contagiando com inspiração. Nos livros A Escolha É Minha, com títulos incluídos no Plano Nacional de Leitura, destacamos este último. Famílias em Construção é uma leitura para todos. É um livro sobre divórcio e transição. Mas sobretudo, sobre coragem e esperança. A autora diz-nos que é uma outra forma de ver o processo. E é precisamente assim que vemos Margarida. Uma mulher que continua a inventar desafios para agitar as águas na aprendizagem da escrita e da leitura.
“Há novas famílias, depois de divórcios, que são inspiradoras, como o caso de uma grande amiga que criou os filhos de ambos num ambiente de grande cumplicidade, reestruturando o que antes parecia um inferno. São casos destes que devíamos observar e replicar”, Margarida Fonseca Santos
Famílias em Construção é o tema do seu novo livro (da coleção A Escolha É Minha).
Qual foi o seu objetivo ao escrever este livro? Que mensagens pretende passar aos jovens? E também aos pais?
Numa sociedade como a nossa, nos dias de hoje, há cada vez mais famílias de tipos diversos, com pais separados, novos parceiros, irmãos de casamentos anteriores, ou meios-irmãos num novo casamento. Era importante falar deste tema. Como todos os livros da coleção A Escolha É Minha, o objetivo é acompanhar quem esta a passar por uma fase difícil mostrando como há sempre a possibilidade (já que nem sempre escolhemos o que nos acontece) de escolhermos a forma como vamos reagir. Não são livros com soluções, nada disso; são livros com caminhos, esperança, deixando em aberto o que cada um pode retirar de toda a narrativa. É nisto que acredito: que se estimule a procura de novas formas de lidar com a mudança, com o sofrimento (nosso ou de outros), com a redefinição do dia-a-dia. O livro é, então, uma forma de acompanhar a transição com coragem e esperança, e também com o apoio carinhoso de quem está connosco. Mas sei que estes livros têm também chegado aos pais, de muitas maneiras, também é para eles. Como são escritos na primeira pessoa, ou seja, como são as personagens que falam, podemos «ouvir» os pensamentos de quem está a passar pelas situações. É uma outra forma de ver o processo.
No seu longo percurso com crianças, já terá contactado com muitas famílias em construção. Foram elas a sua inspiração?
Recordo uma situação, com um dos nossos filhos, no início da primária: eu e o meu marido estávamos um pouco irritados (um de nós esquecera-se de comprar pão!), e demos por ele a chorar à porta da cozinha. Perguntou-nos se nos íamos divorciar. Abraçámo-lo e percebemos que, na turma, havia vários casos nesse processo. Garantimos que não, era só uma discussão tonta sobre o pão. O porquê desta reação era clara: não estava habituado a ver-nos discutir e foi um choque, quando na realidade a única coisa que se passou foi estarmos vencidos de cansaço e não haver pão em casa nos ter parecido um drama (há dias assim!). É engraçado pensar nisto ― chegámos a ser apelidados de «não-casados» por não discutirmos. Foi um dia de conversas entre os quatro, de esclarecimento, de formas de estar em família, de como ajudar os colegas que se encontravam num processo de divórcio. Falar abertamente nos problemas sempre foi, para nós, uma regra. Mesmo nos momentos difíceis, em que a doença, a morte, a instabilidade financeira nos visitavam, falávamos os quatro. A ausência destas conversas teria ditado um crescimento diferente para nós enquanto família.
Conheço muitas famílias que mantêm o casamento, outras tantas que se separaram. Muitas que, embora casadas, vivem num campo minado, outras tantas que são realmente felizes. Mas sempre estive atenta à reação dos filhos, para poder/podermos ajudar quando fizesse sentido. Há novas famílias, depois de divórcios, que são inspiradoras, como o caso de uma grande amiga que criou os filhos de ambos num ambiente de grande cumplicidade, reestruturando o que antes parecia um inferno. São casos destes que devíamos observar e replicar. Foram casos como este que me deram o mote para reequacionar a família das personagens principais. Mas também falo de um caso de violência doméstica, e de como os amigos podem intervir, pois as personagens principais estão muito perto deste cenário. Queria deixar um panorama alargado, mas sobretudo dar tranquilidade e várias perspetivas diferentes.
É impossível falar de Margarida Fonseca Santos sem falar da dor. De zero a 10, quanto estão as pessoas informadas e sensibilizadas para a dor crónica e invisível que afeta tantas mulheres, homens mas também adolescentes?
De zero a dez, diria que, sendo 10 o pior possível, a maior parte das pessoas sabe pouco sobre ela, talvez andemos num 7 ou num 8. É urgente informar!
Viver com dor crónica é desgastante, cansa muito, pode retirar o prazer da vida, do trabalho, das relações, pensando-se no futuro com um ponto de interrogação assustador que nos tolhe os pensamentos e emoções. Tive a sorte de, num primeiro momento em que fiquei vários dias sem conseguir andar sem ajuda, encontrar um neurocirurgião que me explicou que não me podia operar à coluna porque a artrite e as artroses a haviam danificado demasiado. Ao ver-me ficar em choque, sorriu, cúmplice, e explicou-me que a dor pode ser modificada na nossa mente, aconselhou-me a ter as rédeas da dor na mão. Fui então fazer treino mental para lidar com a dor e dei por mim a conseguir que não me incomodasse quando estava a trabalhar ou a conviver, e isso dava-me bem a noção do meu poder sobre ela. A dor é um alarme que não deve ser apagado por completo. Contudo, podemos escolher quanta dor queremos sentir, ou melhor, quanto iremos permitir que afete a nossa vida. Foi uma estrondosa revolução!
Existe um profundo desconhecimento sobre o que é viver com dor crónica, tanto por quem a tem como por quem não a tem (e, muitas vezes, não a entende). Faço parte da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas e um dos grandes objetivos é conseguir uma maior literacia do doente e do público em geral. Por exemplo, precisamos de saber que tipo de dor temos para poder agir em conformidade: a dor inflamatória piora no repouso, a dor mecânica melhora no repouso; é preferível atacar de imediato a dor inflamatória para que a inflamação não tome o freio nos dentes; é importante manter níveis reduzidos de dor, pois o stress físico que esse sofrimento implica pode alterar a forma como sentimos a dor; e por aí fora. As pessoas resignam-se ao ter uma patologia que lhes traz dor crónica, mas o segredo é fazer exatamente o contrário. É preciso entendê-la, saber agir sobre ela e procurar uma excelente relação com o médico que nos segue, para ser um trabalho de equipa. E não posso deixar de falar na família: quando esta compreende e ajuda, o doente, em vez de sentir (como acontece muitas vezes) culpa e até vergonha, sente-se apoiado e confiante e… a dor pode ser reenquadrada.
A propósito de um outro livro, o AltaMente – que é intemporal. Porque tentar ensinar as nossas crianças a serem mais positivas… é uma preocupação. Para quem não leu o livro, pode dar-nos uma dica para implementar essa “tarefa”?
O AltaMente veio na sequência do que aprendi para lidar com a dor. Queria perceber melhor quanto podemos realmente fazer por nós mesmos dentro da nossa mente. Foi um percurso incrível, continua a sê-lo. O ensino/aprendizagem pautou toda a minha vida, e rapidamente me apercebi de como por vezes enredamos as crianças em programações mentais pouco salutares. Por exemplo, certas frases (de pais ou professores) podem transformar-se em crenças fortes que inibem o crescimento, quando outras podiam potenciá-lo. Ser otimista (e realista), tanto na relação connosco mesmos, como na relação com filhos e/ou alunos, como na vida em geral, modifica as possibilidades de conseguirmos avançar, pois estamos mais descontraídos, mais disponíveis para encontrar soluções, mais criativos. Dando um exemplo: quando ensinamos a crianças de 7 ou 8 anos que o cérebro tem uma plasticidade que nos permite expandi-lo, tornando-o mais eficaz e servindo os nossos objetivos, ficam muito entusiasmados. Não se sentem escravos das suas capacidades, sentem-se capazes de as fazer crescer. E basta saberem isso para, perante o trabalho, se sentirem motivados. Trabalho com uma turma (na área da escrita-leitura-atenção-audição interior) que tem uma professora excecional. Instalou uma regra para os seus alunos: o «não consigo» fica lá fora, o «sou capaz» fica na sala. Parece simples, e é, mas são estes pequenos gestos que modificam a atitude de quem aprende e cresce. Um professor que diga «Não percebes nada disto!» não pode esperar que o aluno acredite que pode ser melhor. Contudo, as crianças e jovens entendem rapidamente a diferença entre desistir e ser construtivo, acreditam na mudança para melhor, esforçam-se para obter resultados ― sabem que assim estão mais recetivos às aprendizagens.
O livro tem uma série de exercícios e truques, e tem no final histórias metafóricas, uma excelente forma de aprender a mudar. Diria que a melhor dica para iniciar este processo é «ouvir» o que dizemos: frases com nunca, sempre, és isto ou aquilo (em vez de estás), sou mesmo parva, servem para quê? Lá está ― se não interessam, é melhor apagá-las da conversa. Se nos dão força (como estou a conseguir fazer isto!), se nos fazem sentir melhor, guardam-se e repetem-se. É simples e eficaz.
A Margarida é uma escritora de desafios. O (livro) Desafio em 77 palavras é um deles. Quer deixar um desafio às leitoras de Júlia?
Gostava muito de deixar o desafio às leitoras de Júlia para que… aceitassem o desafio de escrever em 77 palavras! Estão aqui: https://77palavras.blogspot.com/. É muito interessante o que acontece: os desafios são cativantes, puxam pela nossa cabeça e, de cada vez que os aceitamos e contornamos as regras, a nossa capacidade de escrita melhora a passos largos. E escrever faz-nos bem. Imaginem o que será fazer uma história de amor sem usar a letra A: é muito engraçado, rimo-nos bastante para lá chegar, e todos os caminhos percorridos dão-nos, sem esforço, um grande conhecimento do vocabulário, da sintaxe, aprendemos a dizer o mesmo por outras palavras. Isso é fantástico! Os participantes autónomos vão dos 6 aos 101 anos! Estão todas convidadas. É só escolher um desafio, escrever, cortar para ficar com 77 palavras e enviar. Respondo sempre a todos os emails enviados e publico todos os textos que cumprem os desafios. Venham daí!
Em novembro faz 59 anos. Que desafios trazem o número 59?
Sinto que vai ser um ano de consolidação, o que quer dizer que também vai ser de novas aprendizagens. Tenho em mãos, com duas grandes amigas e parceiras de trabalho, um projeto que junta a audição interior (da minha vida ligada à música), a leitura e a escrita, ao que se soma a atenção, a memória, o otimismo, tudo o que fui aprendendo no treino mental. Estamos empenhadas em agitar as águas no ensino da escrita e da leitura, pois são áreas transversais a todo o saber, mas não só. Queremos mudar a forma como as crianças e jovens se sentem ao aprender. É fundamental trabalhar a curiosidade das crianças. É isso que falta, estimular a curiosidade. Aprender depende disso, de querer entender o nosso mundo e o dos outros, de gostar de aprender, e de querer viver em felicidade e com prazer no trabalho. Sinto mesmo que vai ser um ano incrível.