Manel, o menino com Trissomia 21. As asas de Manel

As asas do Manel – que miúdo inspirador!

Ele nunca vai ter carta de condução. O Manel terá sido a primeira e das raras pessoas com trissomia 21 a obterem carta de condução. Ele nunca vai ter um curso. O Manel tirou o curso de tratador de equinos e cumpriu um sonho: trabalhar com cavalos. Ele nunca vai casar. O Manel está noivo de Inês, uma jovem que se apaixonou pela forma como o Manel acredita que o “nunca” é para os outros. O Manel aprendeu a voar. E nesta história, leva-nos nas suas asas. 

Teria uns seis anos na altura. Mas a memória fresca completa-nos o cenário: sentado no sofá da sala de estar, distraído a ver televisão e olhos fixos naquela liberdade e beleza que sempre o atraiu nos cavalos. O mundo equestre galopava no seu próprio mundo, bafejado pela sorte de ter um tio que o ensinou a montar com esta idade. O irmão Gonçalo bate-lhe no braço e chama-o à razão: “os trabalhos de casa, já fizeste?”. O Manel anuiu, mas Gonçalo, habituado a conhecer-lhe a verdade nos olhos, impôs-lhe o ultimato: ou fazes os trabalhos de casa ou não há mais cavalos. O Manel conta-me que saltou do sofá e fez os TPC num ápice. Os irmãos. Sempre os irmãos. “O meu irmão Henrique, mais novo, também me dava na cabeça. Sempre a meu lado, para me encorajar e a dar força, para eu chegar cada vez mal alto e mais longe”. Em casa, os epítetos de “coitadinho” não eram sequer uma possibilidade. E na escola, o irmão mais novo Henrique tratava de assegurar o mesmo comportamento. Henrique morreu com 16 anos, num acidente de mota, o meio de transporte que usava todos os dias para deslocar-se de casa para a escola. Nessa manhã de 5 dezembro, há nove anos, seguia de motociclo para fazer uma prova escolar quando foi tolhido por uma viatura. O Manel tem outros dois irmãos, mais velhos, sendo que o Henrique era uma espécie de irmão gémeo. É a ele que Manel dedica grande parte dos poemas compilados no livro, de sua autoria: “Abri as minhas asas… e voei para além da Trissomia 21”.

“A morte não separa as pessoas que se amam”, como escreve Manel no livro. Mas a saudade do irmão baterá sempre forte: “Olá Henrique, nem imaginas a falta que tu fazes. (…) Eu hoje sonhei que estavas ao lado da Maria Albertina e eu estava a abraçar-te. Tenho boas, muito boas novidades para ti, já arranjei trabalho. Vou trabalhar com o Miguel Sena. Ganho 400 e tal euros por mês. Mano, dia 26 deste mês, vou fazer o exame de condução e já tenho o meu currículo para apresentar no meu trabalho. Eu sem ti não sou nada (…) – in Outra Carta para o Henrique, um dos textos do seu livro.
O gosto pela escrita nasceu na primária, quando a professora Aura – uma das mulheres a quem o Manel dedica o seu livro – pôs a turma inteira a escrever poemas. Manel descobriu que a escrita era libertadora e foi aperfeiçoando a arte ao longo do tempo, grande parte dele passado em escolas oficiais, com apoios (nomeadamente da APPACDM) dentro e fora do estabelecimento de ensino e que lhe proporcionaram completar o 9º ano e frequentar a escola agrícola do Paiã, para fazer o curso de tratador e desbastador de equinos.

Um passo leva ao outro. O curso levou-o à Quinta do Pinheiro, em Alcobaça. É aqui que trabalhou até há bem pouco tempo, cuidando dos animais e pondo em prática a sua formação de hipoterapia com crianças e jovens portadores de deficiência. Está provado que a equitação com fins terapêuticos alcança resultados a nível motor, cognitivo e psicossocial. Neste caso, o exemplo está ali ao lado, monta a cavalo e é o auxiliar do monitor atento, persistente, dedicado e empenhado em mostrar que é possível voar.
“Uma vez, o Diego, uma criança autista, embora gostasse de montar a cavalo, tinha muito medo do escuro. Ficava nervoso e impaciente. Mas não havia como mudar a iluminação do picadeiro coberto! Lembrei-me então de colocar uma lanterna na cabeça do cavalo, o que projetava um clarão quando o animal troteava. O Diego divertiu-se com a ideia e acalmou-se. Mudou o seu comportamento a partir daí”, recorda.

 

Um passo leva ao outro. Manel já tinha reparado em Inês. Surpreendido com a destreza e a ousadia da única rapariga da quinta a tratar de cavalos, comentou o interesse com o patrão, que antes de ser patrão é acima de tudo seu amigo. Mas os segredinhos de cumplicidade entre ambos não foram mais longe. Inês já tinha reparado no Manel. Pelo menos, já tinha descoberto a sua forma meiga e genuína de ajudar o colega do lado. Foi ele que a socorreu nas suas tentativas falhadas de colocar a cabeçada numa égua mais impaciente e sempre pronta a fugir-lhe. Foi ele que a consolou quando, sozinha nas cavalariças, chorava pela morte de um tio próximo: “Inês, fica tranquila. Eu vou pedir ao meu irmão Henrique que olhe pelo teu tio”. Mas se há um episódio decisivo nesta relação de amor estará algures nas páginas do livro de Manel. Um dia Manel ofereceu-lhe o seu livro de poema: “este não é um livro pessoal. É um livro para os pais que educam crianças com trissomia”, é um “apelo para que não desistam dele e lhe deem todas as oportunidades que puderem, mesmo correndo riscos, pois eles vão ser extraordinários”. Inês já suspeitava estar diante de um jovem extraordinário, e quando chegou a casa e leu o livro de uma só golpada, teve a certeza. Era meia noite quando acabou de saborear a contracapa: “Vivo num mundo diferente, tenho um coração ardente. Sou capaz de viver intensamente, Com força e com amor também, Posso viver feliz, no colo da minha mãe”.

Inês sentou-se à secretária e movida pelos ímpetos que só os apaixonados experimentam, decidiu escrever-lhe uma carta expressando os seus sentimentos a Manel. “Enchi um caixote do lixo com rascunhos. Só parei quando achei que tinha escrito as palavras certas. Eram 4 da manhã”, confidencia-nos Inês. No dia a seguir, a carta dos namorados foi deixada junto aos cavalos e fez a felicidade de Manel: “ela abdicou das suas coisas para vir atrás de mim”. Troca de olhares, sorrisos marotos, e uma data marcada com muito amor: dia 14 de novembro, há casamento na Quinta do Pinheiro. (Já vivem juntos, entretanto!)

Esta é a história do Manel que encontrou a sua missão na terra: inspirar outros a seguirem os seus passos, a abrirem as asas e voar, para além da Trissomia 21.
Vamos agora aos co-protagonistas, àqueles que surgem propositadamente no final da história com a peça que falta para explicar todo o enredo. Eles são a força invisível que faz mover a engrenagem, à custa de afetos. A família. Esta é também a história de Constança, a mulher que trocou a carreira de educadora de infância pela vida intensa de mãe (na altura, o bebé Henrique, o Manel e dois irmãos adolescentes Gonçalo e Madalena). Esta é também a história de uma mulher que, quando visitou a suposta futura escola do filho, foi confrontada com a opinião da diretora: “não me leve a mal, mas cada macaco no seu galho”. Constança, Tia Beca para a família e amigos, entendeu que o Manel precisava de outro “galho”, um estabelecimento regular onde pudesse receber a mesma linha de educação dos irmãos: “cumprir aquilo em que eram capazes e serem apoiados especialmente quanto tinham mais dificuldades”.  E encontrou. Mas volta e meia, o assunto era retomado. Mais tarde, uma outra professora aconselhou a jardinagem a Manel em vez dos livros. Constança, não sendo mulher de lutas, bateu o pé. Foi apelidada de utópica e terminava sempre as reuniões escolares entre o riso e a lágrima. “Eu nunca fui aquela mãe guerreira, no sentido de ativista. Ainda bem que as há, devemos-lhes muitas conquistas. Mas o meu percurso e maneira de ser pauta-se pela normalidade. Eu não estava a exigir demasiado do Manel. Mas se ele tinha capacidades, deveriam ser aproveitadas”, conta. Manel concluiu o 9º ano e, empenhadamente, tirou um curso para fazer o que gosta. Do que tem conhecimento das associações, o Manel será das únicas pessoas com trissomia 21 a ter carta de condução. Nos bastidores, o pai e a mãe, a quem o monitor autorizou que acompanhasse as aulas de código (para a carta de mota) para saber como explicar e apoiar o filho nos estudos. Nos bastidores, o pai e a mãe, que foi colecionando as folhas de poemas e um dia motivou Manel a publicá-las em livro. Hoje, com 27 anos, graças a muitos passos e obstáculos superados, o Manel é uma pessoa autónoma.

“Quando a Ni (nora) estava em Inglaterra, tinha um amigo que era o cuidador dos cavalos da rainha. Era ele que conduzia a charrete do Príncipe Carlos. O Manel ficou tão entusiasmado que quis viajar para Londres. Eu e o pais estudámos todos os passos com ele, as palavras em inglês mais usadas, o percurso do check in e, depois, como fazer na recolha das bagagens. Ele estava encantado. Mas para nós foi muito difícil. Quando chegou junto à Ni e ouvimos a sua voz no telemóvel, sentimo-nos a desmaiar”.  Hoje o Manel “sabe fazer tudo aquilo a que se propõe aprender”. Um bravo aos pais que nunca desistem dos filhos.

As asas do Manel - que miúdo inspirador! Familia

Família. Um dos segredos da felicidade de Manel.

Os irmãos estão sempre do seu lado. O Manel retribui, ajudando a tomar conta dos sobrinhos.

“Quando o Manel nasceu em 24 de julho de 1993, ficámos muito tristes e preocupados, naturalmente. Nós, pais, não sabíamos, o que lhe ia acontecer. Chorámos, conversámos, pensámos em tudo o que de pior podia acontecer (não conseguir falar, andar, perceber…), depois pensámos tudo o que poderia acontecer de melhor (estar muito perto da normalidade) e aí decidimos viver o dia a dia, claro está, dando sempre uma espreitadela para o futuro”, a mãe de Manuel Gonçalves

 

As asas do Manel - que miúdo inspirador! manuel_goncalves
O prefácio deste livro é assinado pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa. O Manel escreveu-lhe e o professor acedeu ao pedido, motivado pelas “asas” de Manel.

 

 

 

 

 

 

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