Maria Pintadinha, varredora Alcácer do Sal

“As pessoas viravam-me as costas. Mas hoje é com muito orgulho que limpo a minha cidade”, Maria Pintadinha, varredora Câmara Municipal Alcácer do Sal

Nesta foto (mais antiga), sem máscara.
Ao longo do ano passado, o Blogue Júlia destacou testemunhos da linha da frente. Médicos, enfermeiros, técnicos de limpeza, que não puderem ficar em casa e assumiram papéis determinantes no combate à pandemia, a maior que muitos de nós já assistiu em toda a vida.

É assim que começamos o novo ano. Pela linha da frente, a varrer preconceitos. Com a genuína história de Ana Luísa, 42 anos, conhecida em Alcácer do Sal como Maria Pintadinha. Estará entre os habitantes mais populares da cidade, pela forma como a acorda e a limpa. Foi o que fez no pós fim de ano, no pós-natal. Sempre presente.

“Varrer as ruas ou o desemprego?”, perguntou Ana Luisa, quando há cerca de oito anos, foi abordada pelos seus superiores. Ana tinha conseguido um emprego temporário nas piscinas municipais, mas com o fim do verão, a função tornava-se desnecessária. Ana tinha manifestado, porém, ser uma trabalhadora dedicada e a autarquia partilhou o único lugar que na altura estava à disposição: varredora. Ana aceitou. E interiorizou algumas razões que lhe faziam sentido: “era uma forma honesta de ganhar dinheiro e entendi que era uma segunda oportunidade da câmara e que mais valia ter trabalho do que depender de um rendimento mínimo”.

Ana não hesitava pela dureza das tarefas. Antes das piscinas, fez limpezas, trabalhou nas estufas e já perdeu a conta às vindimas que lhe passaram pelas mãos, e nas quais já fez de tudo um pouco – da preparação do terreno à apanha.

Ana hesitava porque “às vezes parece que esta é uma terra de doutores. Quem é doutor tem direito e bons dias, quem varre as ruas…”. Foi o que aconteceu no primeiro dia em que se apresentou ao trabalho. Motivada e com o apoio da família: “o meu filho sempre me disse que tem orgulho em mim”.

No primeiro dia, Ana fala de vizinhos que fingiram não a conhecer e de pessoas próximas que optaram por mudar de passeio ou simularam atender o telemóvel, evitando o contacto com Ana.

“No regresso a casa, chorei no percurso inteiro. Senti-me como o lixo que varria”, lamenta Ana. Passado algum tempo de tristeza e tentativa de algum conformismo, Ana pediu a demissão. Indeferida. “Ainda hoje, sempre que me cruzo com a engenheira (a responsável pela área à data) da câmara, digo-lhe o quanto lhe estou grata”. O pedido de demissão dependia da assinatura da técnica da autarquia, que a mandou chamar de imediato ao seu gabinete. Ana Luisa  insistia que queria embora. A técnica nunca deixou de contra-argumentar – sabia que Ana estava à beira do divórcio e transmitiu-lhe que abandonar o seu local de trabalho não iria facilitar a situação, especialmente quando precisava de cuidar do filho. “Deu-me conselhos, ajudou-me muito”, recorda.

Ana voltou às ruas e todo o cenário à sua volta mudou quando Ana decidiu mudar de atitude: “passei a ser eu. Eu varro as ruas maquilhada, perfumada e com echarpe ou chapéu. A minhas roupas ou acessórios estão sempre a condizer com a cor da minha vassoura. É como eu gosto de me apresentar. Eu gosto de me arranjar e de me sentir bonita. Às seis da manhã, lá estou eu a varrer com o orgulho de estar na linha da frente e poder contribuir e limpar a minha cidade”.

A varredora, que se tornou conhecida por Maria Pintadinha, tem agora fãs nas ruas da sua cidade: “há meninas a dizer que querem uma bandelete como a da Maria Pintadinha. No outro dia, a senhora do café contava-me que a filha quer ser como a Maria Pintadinha. Perguntei porquê. Respondeu-me que gostava da minha maneira de ser”.

Ana aprendeu a gostar de si, a desligar-se dos preconceitos, e a recuperar ambições. Nos bastidores, os “amigos” imprevistos: “estou a fazer o 9º ano através das Novas Oportunidades. Graças à ajuda da técnica superior de turismo Maria Rita Torres. Conheci-a numa feira em que a câmara participou. Eu estava a varrer o chão e ela deu-me os bons dias. Meteu conversa comigo, disse-me que já tinha ouvido falar no nome Maria Pintadinha. Apresentou-se simplesmente como a Rita. Há pessoas que, quando estão em eventos importantes ou na companhia de pessoas importantes, esquecem-se de cumprimentar a varredora. A Maria Rita não. Há dias, até o senhor Presidente comentou a minha forma de estar no trabalho – a espalhar glamour pelas ruas da cidade. Fiquei a saber que também ele me segue nas redes sociais”, conta, de sorriso aberto e transparente.

Ainda assim, o seu maior fã está em casa: “mãe, és o meu orgulho”, diz-lhe o filho.

 

"As pessoas viravam-me as costas. Mas hoje é com muito orgulho que limpo a minha cidade", Maria Pintadinha, varredora Câmara Municipal Alcácer do Sal Maria-Pintadinha1

Maria Pintadinha, varredora

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