“Já vivi em 11 países diferentes”, Susana Nery, Investigadora na Austrália

Uma Portuguesa em Camberra

Tenho saudades. Da família e dos amigos de longa data que ficaram em Portugal, mas também das pessoas extraordinárias que fui conhecendo onde vivi, amigos de que sinto muita falta. Porém, são eles que dão ainda mais sentido às minhas viagens…Há já 20 anos que tenho este tipo de vida relativamente itinerante. Desde que saí pela primeira vez de Portugal, já vivi em 11 países diferentes, em todos os continentes. Primeiro passei por Estocolmo, na Suécia, para fazer estágio da licenciatura em Bioquímica. Depois, Paris. E, com uma curta passagem por Lisboa pelo meio, Nova Iorque, onde fiz o doutoramento em Neurobiologia, com uma bolsa do programa da Gulbenkian de doutoramento em Biologia e Medicina. O meu interesse em viajar e, mais do que isso, em viver e trabalhar em países diferentes vem assim de há muito tempo. E não tem sempre que ver com o facto de surgirem oportunidades diferentes ou melhores noutros sítios (embora por vezes esse seja o caso).

No ano a seguir ao meu doutoramento, percebi que em termos de carreira profissional precisava de fazer algo, mas aplicado, e que refletisse as preocupações sociais que sempre tive. Foi aí que surgiram outros continentes no meu horizonte. Decidi enveredar por uma carreira em Saúde Pública em países em desenvolvimento. Mudei-me para Londres, para a London School of Hygiene and Tropical Medicine, e fiz um pós-doutoramento em malária. Comecei a trabalhar em África. Durante os três anos seguintes, embora sediada em Londres, fiz trabalho no Quénia, na Tanzânia e na Gâmbia. É lá que conhecem Portugal dos livros de História e mencionam sempre o Vasco da Gama e os Descobrimentos quando sabem que sou portuguesa.

Depois, passei dois anos em Moçambique com uma ONG de controlo de malária – a trabalhar com o Ministério da Saúde na implementação das suas políticas de controlo dessa doença. Seguiram-se mais de três anos em Angola como coordenadora científica de um centro de investigação, na altura recentemente criado, o CISA – Centro de Investigação em Saúde em Angola. Só em 2012 é que regressei ao trabalho académico, que continuo hoje. Aceitei uma posição de investigadora com uma universidade australiana e passei um pouco mais de dois anos em Timor-Leste, com visitas frequentes a Brisbane e depois a Camberra. Sou hoje investigadora da Australian National University e vivo em Camberra. A minha pesquisa tem que ver com controlo de doenças tropicais, incluindo malária e doenças tropicais negligenciadas, como parasitas intestinais transmitidos pelo solo. Os meus estudos tentam testar diferentes intervenções de controlo destas doenças – não têm de ser novas tecnologias ou medicamentos, pode ser simplesmente demonstrar e quantificar o beneficio para comunidades pobres e remotas de intervenções que sabemos que são benéficas e que nós, ou quem vive em países mais desenvolvidos, nem pensamos que há ainda muita gente que vive em pobreza e sem acesso a condições que damos como básicas e adquiridas.

Foi nesta área, de parasitas transmitidos pelo solo, que obtive recentemente financiamento da Fundação Bill and Melinda Gates. E estou a implementar um estudo-piloto em Timor-Leste. Estes parasitas são um problema de saúde pública em países em desenvolvimento. Habitualmente não causam a morte, mas têm associada uma grande morbilidade, incluindo défices de crescimento e anemia, principalmente em crianças. Há mais de 1,5 mil milhões de pessoas infetadas no mundo inteiro. Estes parasitas são transmitidos pela via feco-oral, por exemplo através da ingestão acidental de fezes contaminadas com ovos destes parasitas (e penetração da pele por larvas de algumas espécies). Isto é, estes parasitas são comuns em zonas pobres, com poucas condições de saneamento e de higiene, onde a defecação a céu aberto é comum. Há mil milhões de pessoas que defecam a céu aberto!

Em países endémicos, o que se faz é desparasitar as crianças a cada seis meses ou um ano. E isto tem de ser feito com estas periodicidades, pois na ausência de medidas que diminuam a contaminação do meio as pessoas serão novamente infetadas. Bem, as diretrizes atuais da Organização Mundial de Saúde focam-se principalmente em crianças em idade escolar. O meu estudo-piloto pretende testar a hipótese de que as próprias crianças beneficiam ainda mais se não só elas forem tratadas mas se toda a comunidade for desparasitada e também se houver melhoria nas condições de saneamento. Este estudo pretende gerar evidências que podem ser usadas pelos países endémicos para ajustarem as suas medidas de controlo destas doenças.

Dura, a realidade. Mas escolhi uma profissão que não só me permite viajar, como também trabalhar e levar ajuda aos lugares onde Vasco da Gama ainda é lembrado.

Susana Nery
Investigadora (área da malária) da Australian National University e bolseira da Fundação Bill and Melinda Gates

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