“Uma criança pode ‘viver sem pai’ estando com ele todos os dias”

“Uma criança pode ‘viver sem pai’ estando com ele todos os dias”

E as crianças que crescem sem pai?, perguntei eu à psicóloga Susana Pinto. A resposta dá pano para mangas. E dá muito que pensar. Porque contraria a ideia de que crescer sem pai é quando o pai morre ou emigra. Susana Pinto fala-nos dos pais de hoje, aqueles que empurram os triciclos “porque os meninos não podem dar aos pés”. Aqueles que têm menos iPads que as crianças lá de casa.

Quando é que começa a evidenciar-se o papel do pai – ou seja, na gravidez este papel já tem impacto na criança?

Ser pai e ser mãe não é só conceber um filho. Ser pai e ser mãe é ter ‘espaço’ psicológico, disponibilidade interna dentro de si para pensar, fantasiar e fazer crescer a criança. Por isso, nascer também não tem a ver com a data do parto.

E ser filho é ser-se dentro dos pais, é reconhecer-se, é encontrar-se, é sentir-se pertencente àqueles pais (biológicos ou não). Assim sendo, não vejo diferença quanto ao início de se ser pai ou ser mãe. É um acontecimento interno de cada um, fundamental para o nascimento do filho.

Um filho nasce, em princípio, muito antes do nascimento biológico, nasce na cabeça e no coração dos pais.

Quais são, atualmente, as maiores dificuldades que enfrenta um pai com filhos adolescentes (de acordo com a sua experiência clínica)?

Sinto que os pais se encontram numa altura muito difícil para serem ouvidos e respeitados pelos filhos. Numa época em que tudo é igual, em que a diferença é malvista, em que filhos e pais se sentem no mesmo patamar, as dificuldades expressas pelos pais, nas consultas, referem-se às dificuldades dos filhos em aceitarem regras, a autoridade, a hierarquia de quem sabe mais. Estas queixas alargam-se a outros contextos. Na escola e nas relações com outros, os pais confrontam-se frequentemente com queixas relativas aos filhos por comportamentos de oposição e por apresentarem baixa tolerância à frustração. Os pais descrevem os filhos como tendo dificuldade em ouvir o outro, em respeitar o outro, em tolerar a espera e em aceitar a perda.

Surge também no discurso dos pais a falta de desejo, de direção, de expectativas dos filhos (não sabem o que querem ser, não se conseguem projetar no futuro). As crianças e os adolescentes, na generalidade, têm tudo (material), não sabem desejar, pois antes de o fazerem já o têm.

São dificuldades diferentes das do passado?

Relativamente à disciplina e à autoridade, antigamente predominava o medo. Não se confrontavam as hierarquias, as diferenças, a autoridade. Bastava um olhar do pai para o filho saber que estava a proceder erradamente e parar. Era o oposto de agora, não havia liberdade de expressão. Hoje não há limites da expressividade. Havia também muita violência, mesmo física, do adulto para com a criança e para com o jovem. Atualmente estamos cada vez mais perante o inverso. Pais que se queixam de que os filhos (pequenos, adolescentes e jovens adultos) lhes batem, lhes mordem!

Quanto ao desejo e à fantasia, antigamente também era diferente. Antes, as crianças pegavam em paus e imaginavam que eram espadas e travavam lutas e conquistas. Hoje têm inúmeras espadas de diferentes materiais, com luzes, sons e diversos tamanhos. Antes, as crianças sentavam-se em carrinhos de mão e, à vez, faziam corridas nas ruas junto a casa. Hoje há triciclos empurrados pelos pais (porque os meninos não podem dar aos pés), motas e carros (iguais aos dos pais) a pilhas ou com baterias elétricas.

Antes tinham de imaginar tudo, agora não têm de imaginar nada. Já têm!

Antes, devido às dificuldades económicas das famílias, os jovens tinham desejos e aspirações e sabiam que tinham de trabalhar para o conseguirem obter. Geralmente seguiam a arte dos pais. A falta de conhecimento e de liberdade não lhes dava muitas mais opções. Hoje, a melhoria das condições de vida leva-nos a outras aquisições (há pouco tempo, vi um estudo que concluía que a maioria dos tablets em casa pertencem aos filhos). A maior diversidade, conhecimento e liberdade de escolha relativa ao futuro profissional colocam muitas vezes os adolescentes e jovens perdidos, sem saberem o que seguir, sem referências, até porque, estando a viver em casa dos pais, já têm tudo aquilo de que precisam.

Perante casais homossexuais, compostos por duas mulheres, por exemplo, em que não existe a figura de um pai – há estudos que indicam que este não é um fator determinante da felicidade das crianças. Está de acordo?

O que os últimos estudos têm revelado é que, mesmo em casais homossexuais, existe a representação da função materna e da função paterna. Isto é o mais importante. Antigamente, era frequente a função materna estar associada a empregadas internas que tomavam conta dos meninos, mesmo de noite, davam de comer, levavam e iam buscar ao colégio, falavam com eles (numa altura em que as crianças comiam na cozinha para não incomodarem as refeições dos pais).

Assim percebemos que as funções materna e paterna não estão verdadeiramente ligadas nem ao biológico (como se compreende nos casos de adoção), nem ao género.

Não é tão raro assim encontrarmos pais homens que desempenham o papel maternal (levantam-se de noite quando as crianças acordam, são mais ternurentos, dão colo, são mais tolerantes) e mães que desempenham a função paternal (impõem regras, dão ordens, são mais rigorosas). Então percebemos que isto não tem que ver com o sexo dos elementos do casal mas sim com a sua personalidade, com a sua postura na educação do filho.

Aliás, na primeira questão, refiro que estamos numa altura em que há muita dificuldade em lidar com a autoridade (associada à função paterna), reconhecê-la e aceitá-la, no entanto essas crianças vivem com um pai homem, não foram criadas por casais homossexuais. Por isso, apesar de ser um tema controverso e que ainda se está a estudar, penso que, a partir do momento em que o casal parental assume as suas funções de pais, com o amor, com a disponibilidade interna e externa necessárias para se ser pai, a criança terá um desenvolvimento psicoafetivo normal, com dúvidas, angústias e conflitos, tal como todas as outras crianças.

Crianças que crescem sem pai – que impacto terá esta situação nas crianças em jovens adultos?

O que é crescer sem pai? É quando o pai morre? É quando o pai emigra, mas mantém o contacto (presencial ou por Skype)? É quando decide estar afastado e não se envolver enquanto pai, mesmo vivendo ao lado? É quando está vários anos na prisão?

O impacto emocional que cada uma destas situações poderá ter no desenvolvimento psicoafetivo da criança depende não só da situação, mas de como ela é vivida por todos os que a rodeiam. Quando um pai morre mas a mãe e a sua família o conseguem manter ‘vivo’ dentro de si, o impacto da sua ausência pode não ser desorganizador psicologicamente.

Uma criança pode ‘viver sem pai’ estando com ele todos os dias. Se esse pai não desempenhar as suas funções parentais, se não quiser ser pai, se a mãe e a sua família não o considerarem e não reconhecerem as suas opiniões e decisões de pai… Essas situações serão com certeza muito mais desencadeadoras de angústias e de desorganização psicoafetiva do que em alguns casos a morte/ausência de um pai.

Um pai é fundamental para o desenvolvimento da criança. A sua presença depende da vida que ele tem dentro da criança e dos que a rodeiam.

Os pais estão a envelhecer… Quais são os seus conselhos para envelhecer com equilíbrio?

Eu diria que os pais estão a ser pais cada vez mais tarde, mas não o reconhecem. Ou seja, cada vez mais as pessoas tendem a querer ter tudo antes de ter filhos (casa, carro, emprego estável, viajar, telemóveis, computadores,…). Tentam então ser pais mais tarde do que antigamente e, muitas vezes, essa situação causa dissabores e dificuldades.

De seguida, vemos pais a evitarem confrontar-se com a diferença de idades entre si e os filhos, como se fossem todos amigos. Antigamente, envelhecer era um estatuto. O mais velho era considerado, respeitado, sábio pela sua experiência. Hoje ninguém quer ter rugas (nem homens, nem mulheres) porque ser mais velho é sinal de fragilidade e fraqueza.

Como envelhecer com equilíbrio? Penso que é poder assumir a idade que se tem, fazendo prevalecer as suas ideias e opiniões, a sua experiência, mas também assumindo as suas limitações, que advêm da idade. É estar confortável com a sua idade, ficar satisfeito com a concretização de objetivos e sonhos e com isso poder melhorar a sua autoimagem, a sua autoestima, e projetar-se em novos caminhos e desejos.

Considero que a verdadeira idade não tem tanto que ver com a data de nascimento mas com a idade interna de cada um!

Quem é Susana Pinto

Nasci e vivo no Porto. Sou casada e tenho três filhos.

Sou membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses e especialista em Psicologia Clínica e Psicologia da Educação.

Terminei a licenciatura em Psicologia Clínica em 1999 e logo iniciei a minha prática clínica com crianças e suas famílias. Em 2000, comecei a fazer acompanhamentos psicoterapêuticos a adultos.

Desde o início da minha atividade profissional, tenho tentado conhecer e aprofundar os meus conhecimentos acerca de mim própria enquanto pessoa (percurso psicanalítico) e acerca do funcionamento mental, intra e interpessoal. Assim sendo, fui procurando formas de intervenção que pudessem complementar a minha formação inicial.

Tenho desenvolvido a minha atividade profissional em diferentes locais e com diversas equipas, o que me tem permitido crescer profissionalmente em diferentes áreas. Estas áreas vão desde a massagem infantil à intervenção psicoterapêutica com a técnica Floortime, dos grupos terapêuticos da latência à especialização em Terapia Psicanalítica de Casal e de Família, entre outros.

Atualmente tenho a possibilidade de dar consultas no Porto, em Gaia e em Matosinhos, continuando a aprender e a crescer com todos os que me rodeiam!

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