Os pais das crianças de ontem, de hoje e de amanhã têm de brincar e de amar. Mas também têm de pôr limites e de disciplinar

“Os pais das crianças de ontem, de hoje e de amanhã têm de brincar e de amar. Mas também têm de pôr limites e de disciplinar”

Num mundo marcado pelo ‘rapidismo’, há grandes alterações, novos conceitos de família e até novas formas de compromisso, concebidos e alimentados pela internet. Mas, por outro lado, existem desafios que não vão mudar de hoje para amanhã, defende a Psicóloga Clínica Margarida Cordo.

O relatório da OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) “The Future of Families to 2013” estima que em 2025-30, os agregados familiares individuais representarão, em vários países, cerca de 40% ou mais de todas as famílias. O relatório refere ainda o crescimento de famílias sem filhos, dos índices de divórcio e das famílias reconstituídas.

As famílias vão acabar?

As famílias não vão acabar. O que pode haver, de facto, são alterações dos formatos das famílias tradicionais e, em algumas circunstâncias, com potencial e relevante prejuízo para esta célula tão fundamental para a evolução saudável da sociedade.

Este mesmo relatório sugere por outro lado uma “Golden Age”, sustentada em situações laborais e num envelhecimento com maior qualidade de vida, para alguns. Ou seja, as projeções deste programa antecipam o aumento das desigualdades. Como nos deveremos preparar para este cenário?

Na minha perspetiva, se houvesse uma “fórmula”, algumas situações indesejáveis não ocorreriam. Contudo, mesmo sem “fórmula”, defendo que as desigualdades sociais dependem um pouco de todos nós. No mundo atual, a tendência para o egocentrismo é cada vez mais abrangente. Muito se fala de solidariedade, mas a sua pragmatização está a tornar-se pouco frequente ou então é pragmatizada quando os atos dão visibilidade, num mundo em que a ambição de protagonismo vai encobrindo a desejável descrição. Esta (a descrição) faria com que as boas intervenções sociais fossem genuínas, abrangentes e colocassem os princípios e os valores acima das personalidades de quem os proporciona.

Por outro lado o carreirismo/ambição de carreira deveria ser relativizado com medidas concretas, sobretudo para as mulheres. Cada vez o número de filhos é menor; têm mães mais velhas e mais diferenciadas, mas trata-se de uma diferenciação cognitiva; a disponibilidade de tempo é também menor com todos os prejuízos que isso acarreta.

Uma das queixas atuais dos casais com filhos é a falta de tempo para cuidarem das suas crianças. Mas o futuro antecipa cenários de teletrabalhos e consultas de saúde à distância. Na sua opinião, as mães vão ter mais tempo para cuidar do lar? Ou motivos – como o eventual aumento da participação ativa das mulheres na sociedade – podem travar esta questão?

Estas medidas podem facilitar uma maior disponibilidade temporal, mas não necessariamente afetiva e efetiva na relação com as crianças. Tem, ao mesmo tempo, de haver uma consciencialização de que decidir é ganhar e abdicar. Não ganhar e perder. Ou seja uma mulher quando decide ser mãe tem de ser suficientemente madura para perceber o que é este desempenho de papel pleno que não tem de ser exclusivo, mas tem e deve ser equilibrado. É preciso investir no equilíbrio desejável entre vida afetiva, cultura e trabalho. Tudo faz parte, mas com equilíbrio e flexibilidade para se perceber aquilo de que tem de se abrir mão em determinados momentos da vida.

Por outro lado, há quem defenda que falar de tempo de qualidade com os filhos é uma banalidade pouco importante, mas não é. É preferível estar presente um pouco menos tempo, mas bem, do que muito e sem satisfação, com frustração, no fundo indisponível. As crianças precisam de “muito pouco” – brincar, comer, dormir e ser amadas e essa é uma responsabilidade que não pode ser ignorada pelos casais quando estes decidem ter os seus filhos.

Um dos responsáveis pelo estudo (Imperial College Business School e Harmony) sobre “The Future of Dating: 2040” disse à imprensa, a propósito das conclusões do estudo, que “as pessoas querem encontrar um par e finalmente vão formar relações da forma mais eficiente possível”. Ou seja, mais encontros online ou através de realidade virtual. Isto reflete um novo mindset perante a ideia de compromisso?

Isto reflete um novo mindset perante a ideia de mundo. Há um paradoxo divulgado a que chamam o paradoxo da tecnologia que diz que as tecnologias aproximam quem está longe, mas afastam quem está perto. Na minha opinião, a simplificação proveniente das relações criadas virtualmente, que não dão trabalho, que estão circunscritas no tempo que se determina disponibilizar, … faz com que as pessoas concebam relações sem o essencial – a presença (sem viver com o outro, nem para ele. No fundo sem se darem). Por outro lado, vivemos num mundo do “rapidismo” em que não se fazem aprendizagens fundamentais como adiar a gratificação e lidar com as frustrações. Sem isto não há resiliência, aspeto fundamental para que também haja capacidade de superação e de resolução de problemas, inevitáveis no dia a dia e também nas relações afetivas.

As relações afetivas não têm de ser concebidas com eficácia e eficiência. Têm/ devem ser vividas com tudo o que naturalmente as integra. Por isso (sem querer fazer generalizações, porque há exceções boas e que provam o contrário do que agora digo) ainda me faz impressão que haja encontros pré-concebidos por algoritmos. Volto a enfatizar que há exceções, mas apelo a que as pessoas, mesmo que se encontrem online, não deixem de se viver em presença, antes de decidirem sobre as suas vidas.

Quando falo de mundo do “rapidismo”, quero dizer que hoje em dia basta saber clicar para sobreviver. Há poucas décadas, era preciso saber consultar enciclopédias, recorrer às listas telefónicas, deixar recados em telefones fixos e esperar que nos contactassem. Tudo isto nos ajudava a termos serenidade, a desejar, a investirmos com esforço, confiando que o benefício chegaria depois. E estes skills então adquiridos continuam fazer falta para a vida concreta (são válidos também para o presente e para o futuro). Assim, temos de ser maduros na utilização do que nos simplifica a vida.

Finalmente, na sua opinião, quais serão os grandes desafios pais-filhos, no futuro?

O maior desafio é que os pais, sobretudo os pais as crianças que nasceram desde o ano 2000, têm de ter a humildade de aceitar que não sabem para que mundo educam. Ou seja os seus filhos, vão, por exemplo ter empregos que ainda não foram sequer inventados; vão ter desafios hoje inimagináveis; vão continuar a precisar de saber existir ao ar livre, apesar dos atrativos dos ecrãs eletrónicos; vão ter de ter amigos reais e não “amigos desconhecidos”; vão ter de descobrir o mundo e não de se deixarem “descobrir pelo próprio mundo”.

Estes pais têm de ter consciência de que existem fenómenos antes impensáveis, como por exemplo o phubbing (troca de mais palavras escritas do que ditas) e contrariá-los com a naturalidade de quem tem melhor para oferecer, sem a eles se oporem com negativismo, para que os seus filhos também estejam integrados no que é atual.

No fundo têm de ser profundamente atentos – é preferível que vejam o que acontece e estejam perto, em vez de se afastarem, negando por um certo comodismo ou sentimento de impotência, o que pode estar a acontecer.

Com tudo o que mais podia ser dito, há um desafio que não tem época nem geração – os pais das crianças de ontem, de hoje e de amanhã têm de brincar e de amar. Mas, também têm de pôr limites e de disciplinar. Com equilíbrio entre estas vertentes, os adultos de amanhã serão certamente mais felizes e a sociedade será feita de melhores pessoas.

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