“Um dia, a perseguição foi longe demais. Recebi a seguinte mensagem no telemóvel: ‘Sei que estás em casa por causa do teu contador da água’…”
Este é o testemunho de Alice, 28 anos, que nos fala da perseguição constante de que foi alvo, há uns anos. “Na altura tinha amigos que diziam ‘há muita miúda por aí a querer a atenção que estás a ter’. Mas sentia-me aterrorizada, incapaz de fazer o que fosse.”
Conheceram-se no trabalho – um part-time com turnos rotativos. Muitas vezes encontravam-se, mas passavam dias em que os horários não coincidiam. A relação manteve-se amigável, nada mais. “Bebíamos café de vez em quando com outros colegas. Nunca houve flirt, ou indicação de querer algo mais. Aliás, sempre pensei que ele era casado.”
Foi quando Alice quis rescindir o contrato que a situação despoletou. Começou a receber chamadas do número do ex-colega, a maior parte das vezes sem ouvir ninguém do outro lado da linha. “Pensava que era engano. Tínhamos trocado o contacto para combinar turnos, fazer umas trocas. Ignorei, mas depois liguei-lhe de volta, passadas muitas outras chamadas. Quando ele atendeu, perguntei-lhe: ‘Então? Estás com o meu número no automático?’ Mas ele não me dirigiu palavra. Desligou.”
Achou estranho. Alice contou a situação ao namorado da altura, que a apoiou e com quem ainda hoje mantém amizade. “Ele encolheu os ombros, pensando tratar-se de timidez.”
“Quero o melhor para ti”
Seguiram-se mensagens de texto. Sobre o novo corte de cabelo que Alice tinha acabado de fazer, sobre o casaco novo que acabara de comprar. Alice chegou a encontrar doces e rebuçados na mala, quando nunca comprou mais do que as ocasionais pastilhas de mentol.
Viver às escondidas
As mensagens seguintes seriam assustadoras, como conta Alice a Júlia – De Bem com a Vida. “Perguntava-me onde estava e com quem.” Ele sabia que Alice não estava em casa. A jovem começou a navegar com uma lanterna pela casa, com medo de acender as luzes, que indicariam a sua chegada a casa. Tinha sempre os estores fechados. Um dia, a perseguição foi longe demais: “Sei que estás em casa por causa do teu contador da água,” recebeu, uma noite, quando a colega com quem partilhava o apartamento tinha saído de fim-de-semana.
Alice passou a avisar os vizinhos para que não deixassem entrar estranhos no prédio, incluindo aqueles que dissessem conhecê-la. Mas ainda assim, as noites sem sono prolongavam-se. Na faculdade, as notas começaram a descer. Alice tinha medo de estar em casa, medo de estar na casa dos amigos. Medo de andar de autocarro, onde o perseguidor simulou um encontro por coincidência. Alice saiu na primeira paragem, a correr, mal avistou um polícia. E fez o regresso a casa a olhar por cima do ombro.
Tomar medidas
“Foi o João [o namorado na altura] que me ajudou. Arranjou-me um telemóvel novo – um antigo dele – e bloqueou todos os números desconhecidos.” Alice mudou de casa, pedindo à colega de apartamento que levasse algumas das suas posses, sem dar nas vistas. “Não queria dar mesmo a ideia de que ia mudar de casa. Saí antes de terminar o contrato, de forma a que o senhorio não arrendasse o quarto e este permanecesse livre dois meses.”
Foi dispendioso, mas valeu a pena. No entanto, Alice sofreu as consequências desta perseguição durante muito tempo. “Estive dois anos a fazer psicoterapia – além do medo de fazer novos amigos, também sofria de paranóia sobre aqueles que já faziam parte do meu círculo próximo. Felizmente, a minha família e aqueles que me são mais próximos compreenderam.”
Alice tinha medo. Foi vítima de Stalking. O que é o Stalking?
Segundo o Manual “Stalking – Boas práticas no apoio à vítima”, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, o Stalking define-se como “uma forma particular de violência relacional. Pode ser definido como um padrão de comportamentos de assédio persistente, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (ex: oferecer presentes, telefonar frequentemente, deixar mensagens escritas) ou em ações inequivocamente intimidatórias (perseguição, mensagens ameaçadoras).”
Como me posso defender, em termos legais?
A advogada Sofia Matos contextualiza o termo e responde: “O Stalking, corresponde ao que a nossa lei penal denomina por “Perseguição”. A lei que criminaliza o stalking entrou em vigor em setembro de 2015. Até então, comportamentos de perseguição tinham de ser enquadrados noutro tipo de crimes, como a devassa da vida privada ou ofensas físicas. Hoje, o nosso Código Penal no artigo 154º-A qualifica de stalking todos os atos que se enquadrem no tipo legal de crime, a saber “Quem de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até três anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber, por força de outra disposição legal”.
Trata-se de um crime particular, isto é, que depende de queixa. Não esquecer que o direito à queixa prescreve no prazo de 6 meses a contar da prática dos factos, pelo que é essencial que as vítimas de stalking apresentem queixa junto de uma esquadra de polícia ou diretamente ao Ministério Público”.
A queixa às entidades competentes, queixa que Alice nunca apresentou, é um meio de defesa. O que podem/devem fazer mais as vítimas?
O que fazer – aprenda a defender-se
Segundo o Guia “Stalking – Boas práticas no apoio à vítima”, é sempre importante abordar a situação de uma forma calma e racional quando nos deparamos com uma perseguição ou assédio. “O apoio precoce é fundamental”, é preciso valorizar o pedido de ajuda, normalizar as reações de insegurança, e dar voz à vítima.
De uma forma mais ativa, é necessário manter sempre a vigilância como ter sempre um telemóvel disponível, colocar fechaduras de segurança, ter documentos consigo. Se estiver em movimento, estar vigilante antes de entrar ou sair do carro, viajar com as portas do carro trancadas e dar espaço suficiente entre os outros carros para escapulir de uma perseguição na estrada. No emprego, se possível, aconselha-se a troca de horários, o estacionar do carro em local visível e perto do local de trabalho e o sensibilizar a entidade patronal para o reforço da segurança, recomendam os autores deste Manual.
É preciso também ser claro para com o autor da perseguição, esclarecer o desinteresse da parte da vítima num local seguro e público. Mas sempre consciente que poderá receber uma retaliação por parte do stalker.
Depois de transmitido esse desinteresse, a vítima é aconselhada a cortar por completo o contacto com o autor.
Gravar todos os emails, mensagens, guardar todas as notas e prendas para registo documental dos incidentes poderá a ser da máxima utilidade para potenciais diligências legais.
Neste Manual, é ainda aconselhado a procura de ajuda através de profissionais de apoio à vítima e psicólogos, de modo a trabalhar as perturbações mentais que este tipo de interação poderá desencadear na vítima.
Mitos e Factos sobre Stalking
(Fonte: Manual
Habitualmente as vítimas não conhecem o stalker.
A investigação indica que na maioria dos casos, o/a stalker é alguém conhecido da vítima, isto é, ex-parceiro/a íntimo, familiar, amigo/a, colega. Por exemplo, em Portugal, apenas uma em quatro vítimas desconhecia o stalker.
A melhor estratégia para lidar com o stalking é desvalorizando a conduta do stalker.
Desvalorizar, negar ou minimizar não são boas estratégias para pôr fim ao stalking. Pelo contrário, raramente as situações se resolvem “por si”. Procurar apoio (formal e informal) e lidar proativamente (ex: evitar o contacto com o stalker) com a situação são medidas essenciais.