Quando a vi, alheada e perdida numa maca, já na ambulância, cravou-se uma garra no meu coração. Não parecia ela, a mulher altiva que me educou.
Estreei-me por respeito aos que acreditaram em mim e estreei-me porque era preciso fazê-lo. Por mim e pela minha Mãe! Acredito que ela ainda irá ver a filha a cumprir o sonho.
A minha Mãe tem uma idade provecta. Bateu os oitenta com galhardia, autónoma, senhora da sua vida e do seu nariz. Nunca foi dependente de ninguém. A liberdade de movimentos e de escolhas são a sua religião. No dia 3 de Março, sofreu um AVC severo.
Quando a vi, alheada e perdida numa maca, já na ambulância, cravou-se uma garra no meu coração. Não parecia ela, a mulher altiva que me educou. Estava desprotegida e perdida no nevoeiro de um cérebro afetado, locomoção comprometida e sem reconhecer ninguém. Foi um dia de pesadelo. Por não saber se havia futuro, por não saber se esse futuro seria aceitável para a formidável mulher que me deu à luz.
Não me permiti chorar, andei pelos corredores de dois hospitais públicos, onde só vi profissionais competentes e atentos às necessidades da minha mãe e de todos os outros pacientes que não paravam de chegar à Unidade de AVCs do Hospital São Francisco Xavier.
Nesse fim de semana, cumpria as primeiras três semanas de ensaio para a peça Monólogos da Vagina e, após as primeiras horas de aturdimento, liguei ao meu encenador Paulo Sousa e Costa, para me desvincular do projeto. Estávamos na fase mais crítica da construção do espetáculo, era impensável fazer um programa de televisão em direto, todos os dias, ensaiar todos os dias e acompanhar a minha Mãe nos Cuidados Intensivos.
Os dias passaram como um comboio veloz, não tenho imagens de nada. Apenas do olhar inquisitivo da minha Mãe, na cama do hospital, a ternura da minha família e colegas de trabalho e da imensa paciência da minha nova tribo, os amigos do Teatro que não aceitaram que eu saísse do projeto, aturando o meu olhar triste, a minha falta de energia e todas as dúvidas por continuar esta teimosia que parecia impossível: sonhar com as Tábuas.
Na noite da estreia dos Monólogos da Vagina, estreei duas vezes. Apresentei-me em palco pela primeira vez, apesar de emocionalmente não ter condições para o fazer. Estreei-me por respeito aos que acreditaram em mim e estreei-me porque era preciso fazê-lo. Por mim e pela minha Mãe! Acredito que ela ainda irá ver a filha a cumprir o sonho e que, embora mais limitada e se calhar ajudada por todos, vai aplaudir a nossa mútua vitória. Está viva! Está melhor! A mulher altiva já regressou. Já refila, argumenta e, quando se sente muito cansada, dá-me a mão e agarra-a com muita força. Como quando eu era pequenina. E ambas ficamos mais confortadas. Amo-te Mamã.