A inutilidade da perfeição, Crónica de Pedro Chagas Freitas

Fomos Adultos Antes do Tempo

Ontem senti a tua falta. Mais uma vez a tua falta. Estava uma menina a brincar no jardim e eu quis dizer-te que podia muito bem ser a nossa. A menina que nunca tivemos. Se tivéssemos arriscado teria sido assim, tenho a certeza. Uma menina com a tua cara de anjo e essa cabeça linda. De mim herdaria a responsabilidade. Só espero que não herdasse o orgulho. O canalha do orgulho.

Há uma pessoa a mais num casal quando existe o orgulho a separá-lo.

Podia ligar-te e dizer-te que sim. Que tinhas razão. Tinhas sempre razão. A dona da verdade. E tinhas. A verdade é que tinhas. E eu sempre neste braço de ferro em que ambos perdíamos. Em que ambos nos perdemos.

Há um casal que se dobra a cada braço de ferro que se faz.

Podia falar-te das noites que nunca acabam. São sempre as noites, não é? De dia há pessoas, o emprego (a Joana da recepção fala todos os dias de ti, quer saber como estás e eu só lhe digo que estarás bem, estarás certamente bem, é pelo menos nisso que quero acreditar, ou se calhar não, se calhar quero acreditar que não estás bem como eu não estou bem, como se pode estar bem quando se chega a casa e tu não estás?), a luz ainda vai ajudando a tapar a sombra que ficou em mim, depois alguém conta uma piada, outra revela um segredo, e a vida vai andando. Que ironia, não é? Eu, que nunca quis ir andando, que sempre recusei o que todos os outros tinham (“ai de nós se caímos na rotina, quando isso acontecer mata-nos imediatamente, por favor”; e tu mataste, e tu mataste), a contentar-me com este mais ou menos feliz, este mais ou menos vivo.

Há um menos a mais em cada mais ou menos que se vive.

Mas depois chega a noite, como te dizia. A noite não passa. E estende-se. Ocupa-me. O médico deu-me umas drogas quaisquer para aguentar. E mesmo assim entras-me pelos sonhos, fecho os olhos e estás, abro-os e estás. Éramos tão felizes, não éramos? Resta-me continuar, apenas isso. Acreditar que um dia percebes que só nos faltou esquecer a maturidade.

Há razão a mais quando um casal se esquece de por vezes perder a razão.

Fomos adultos antes do tempo, crianças armadas em sérias, meninos a brincar ao casamento. E o orgulho. Já te falei nele? Vou falar-te de novo. Vou explicar-to outra vez. Basta que me atendas o telefone. Só mais uma vez, vá.

Comentários

comentários