A inutilidade da perfeição, por Pedro Chagas Freitas

Sabe-se quando é ou não é amor apenas no instante em que acontece o que pode separar.

Se o que pode separar separa mesmo: é tudo menos amor. Se o que pode separar junta ainda mais: então é amor.

E o que nos une é amor, mãe. Como se eu e tu não o soubéssemos. Mais tu, claro, que ainda eu não sabia quem tu eras e já te fazia tanta coisa que te podia separar de mim. Uma mãe resiste a tudo menos ao seu filho. Mais ainda: uma mãe resiste a tudo pelo seu filho.

Sabe-se quando é ou não amor apenas no instante em que é preciso resistir a tudo pelo que pode ser amor.

E nós resistimos. Mais tu, repito, que me viste fazer asneiras, milhares delas, dizer asneiras, milhares delas, tentar asneiras, milhares delas, magoar-me (e magoar-te) com asneiras, milhares delas. E a dor, a cabra da dor. A perda. O avô que foi com a doença maldita, a avó que foi com as saudades mais horríveis e mais belas que alguém pode ter, o acidente estúpido (nunca mais toquei numa pinga de álcool, como te prometi nesse dia) do tio. Como dói a vida quando vai passando. E a vida tem de passar e nós no meio dela. É quem amamos que nos agarra à vida: que nos agarra a vida. O amor existe para nos agarrar a vida, pouco mais. Porque na verdade pouco mais há na vida do que isso. E tu. Tu continuas aqui, mesmo agora, enquanto escrevo estas palavras que nem imaginas que são para ti, com esse sorriso só teu (és tão bonita, tu sabes), a olhar-me como se tudo o que tivesses sentido por mim fosse esse orgulho que não pára, esse sorriso que não passa. Sou pequeno demais para o teu amor, mãe.

Sabe-se quando é ou não amor apenas no instante em que é preciso definir o tamanho do que se sente.

Se precisas de muitas e muitas palavras para definir o que sentes: então não é amor. Se nem precisas de palavras: então é amor. Nós olhamo-nos e dizemo- -nos. Por acaso há, por vezes, palavras. Mas somente porque necessitamos delas para outras coisas, como para comunicar tudo o resto que não seja amor. Ou então para escrever uma carta como esta que te escrevo agora. Eu sei que não tinha de a escrever, mas, que diabo, também tenho de te dar alguma coisa na vida, não é?

Sabe-se quando é ou não amor apenas no instante em que pensamos verdadeiramente no que já demos e no que já recebemos de alguém.

E só quando o que demos é exactamente o mesmo que recebemos (porque, por sorte – ou por amor, melhor o dizendo –, dar algo a quem amamos é uma forma de nos darmos algo a nós) é que é amor. E é por isso que quando me perguntavam, há muitos anos, o que é eu queria ser quando fosse grande eu respondia, com toda a simplicidade de um menino como outro qualquer: “filho da minha mãe”. Não me tenho dado mal, pois não, mãe?

Comentários

comentários