Sou ecologista de pessoas, por Pedro Chagas Freitas

“Sou ecologista de pessoas”, dizia ele, semblante despreocupado, como se estivesse a proferir a mais banal frase do mundo. “Separo-as com cuidado, escolho quem vai para onde e quem simplesmente merece o lixo”, prosseguia, a sala inteira a ouvi-lo falar, algumas tosses comprometidas (o humano tem a faculdade de tossir para tapar o silêncio: os silêncios que ferem ou que incomodam), ao fundo alguém que queria contrariá-lo mas que na verdade nada tinha para argumentar. Mais valia estar calado, então. Assim foi.

“Só o que merece ser reciclado merece o meu tempo, que nenhum planeta precisa de pessoas tóxicas, ora essa”, agora talvez tenha saído um sorriso, ou talvez não, talvez tenha sido apenas um ligeiro trejeito, certo é que ele continuava e a sala continuava ali para o ouvir, por mais surpreendente que fosse – ou sobretudo por isso, por ser surpreendente, há tanta falta de coisas e palavras surpreendentes neste mundo, não há?

“Por vezes engano-me, percebo que deitei fora o que devia ter guardado, e é então que trabalho que nem um louco para o tentar recuperar, percorro todos os lugares onde poderia estar o que despejei, sujo-me se necessário, rastejo se necessário, pedincho, ajoelho, peço por tudo para poder encontrar o que tanto quero de volta. É claro que houve ocasiões em que não consegui, mas também faz parte do mundo haver o que se perdeu sem que se possa recuperar, temos de o aceitar por mais que custe, e custa, ó se custa”,

uma mulher a meio da sala levanta-se, coloca o dedo no ar, ele olha-a, aperta as veias do pescoço com força, acende um cigarro com as mãos trémulas, nada diz, olha-a e espera (a vida é tantas vezes olhar e esperar, olhar e esperar, olhar e esperar). “E também poupa energia? Também só se dedica a pessoas quando sabe que a energia que vai gastar será bem gasta?”, a pergunta é direta, as palavras secas, o olhar cerrado. Ele hesita, olha-a, depois olha o chão, depois olha a audiência, até que uma palavra sai, só uma (a vida traz-nos momentos em que uma palavra basta, em que até nenhuma palavra basta, em que tudo o que interessa não tem tradução para o alfabeto, quem inventou o alfabeto sabia disso, só podia saber disso, que o alfabeto é incompleto para tantas coisas que a vida nos traz, e não há mal nenhum, é para isso que servem os gestos, os toques; no limite: é para isso que servem as pessoas): “Filha”,

a mulher sentou-se, limpou uma lágrima; ele prosseguiu com a sua teorização sobre a necessidade de poupar o planeta de más pessoas, e a vida continuou, a vida continuou, e a maior sacanagem da vida é continuar mesmo quando um pai e uma filha não se falam, ou quando uma mulher e um marido não se falam, ou quando quem quer que seja que se queira e se goste não se fale; a vida, nesses momentos, devia parar, parar de imediato, time-out, chamar os dois contendores a um canto, dizer-lhes que estão a ser palermas, estúpidos, idiotas, dizer-lhes que têm de falar, que têm de se entender, que têm de se gostar por palavras e atos, e só então a vida continuaria,

mas não, não é assim, a vida, essa cabra, continua mesmo quando nos falta tanto para que a vida realmente continue.

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