O silêncio dos inocentes

O silêncio dos inocentes

Nem sempre o silêncio é de ouro, como se costuma dizer. Três histórias de vida que não merecem ser silenciadas.

“Morreu mesmo à minha frente, 10 minutos e mais de 20 facadas depois”
Cláudia, 30 anos

No dia de 13 de abril de 2004, Cláudia assistiu ao homicídio cometido pelo padrasto, com quem a mãe se tinha casado três meses antes, após um curto namoro. “Ela morreu mesmo à minha frente, 10 minutos e mais de 20 facadas depois”, conta Cláudia. Tinha 12 anos quando testemunhou a morte da sua mãe, uma mulher que recorda pelas suas “gargalhadas e vontade de viver”.

“As palavras nunca serão tão brutais quanto o sentimento de culpa que carreguei durante anos”, confessa. Cláudia nunca se apercebera de nenhum sinal violência até esse momento. “Em tribunal, repeti vezes sem conta o que vi, o que senti. Perguntaram-me se alguma vez tinha presenciado outras situações de violência, ao que respondi que não, nunca.”

Já na casa da irmã, com quem foi viver, a situação de violência tornou a repetir-se:

“Vê lá se queres acabar como a tua mãe!”, ouviu da boca do cunhado.

“Custou-me a acreditar. Estaria a delirar? Não, não podia ser. Não seria suposto este novo ‘lar’ trazer-me paz, segurança?”

A sua irmã, também de luto pela morte da mãe e com uma filha de três meses no colo, era ameaçada de morte. Admite que, durante meses, não teve reação. “Não disse a ninguém. Não sabia o que fazer.”

“A minha irmã era vítima de abusos físicos e emocionais todos os dias e eu sentia-me completamente impotente para a ajudar”, explica.

Até que um dia ‘acordou’: “Vi um cartaz da APAV e comecei a pensar que a nossa história não era um caso único. Talvez alguém nos pudesse ajudar, alguém pudesse compreender.”

A primeira tentativa de pedido de auxílio, a uma professora da localidade, foi falhada: “Talvez por estarmos a falar de um meio pequeno, onde todos se conhecem. Talvez porque vivemos num país em que o velho ditado ‘entre marido e mulher não metas a colher’ ainda tem muita força.”

Restava-lhe o contacto para a associação, a APAV. Foi assim que finalmente ganhou forças e ajuda para partir com a irmã e procurar um refúgio.

“Durante anos, acreditei que poderia ter feito alguma coisa para evitar este desfecho. Hoje, sei que pouco ou nada uma criança pode fazer numa situação como aquela.”

É com revolta que recorda o facto de se ter sentido abandonada. “Julgo que a prioridade número 1 do Estado é entregar a criança a quem está mais à mão.”

“Cerca de 700 crianças ficaram órfãs [devido a violência doméstica] na última década. O que é feito destas crianças? Como vivem? Com quem vivem? Conseguiram ultrapassar este profundo trauma? Ninguém sabe.” E aproveita para apelar à ação. “Não basta dizer basta à violência doméstica. É preciso agir. Precisamos de medidas rápidas e eficazes para mudar esta realidade.”

Às vítimas que sofrem em silêncio, Cláudia faz um pedido: “Procurem ajuda, não fiquem em silêncio. Pedir ajuda é o primeiro passo para uma nova vida, uma vida na qual nem tudo será cor-de-rosa, mas em que estará nas vossas mãos decidir qual o caminho a seguir para alcançar todos os sonhos.”

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“Não me arrependo de ter estado em silêncio. Poupou-me muitos dissabores”
Alexandra Sousa, Transexual, 51 anos

Basta fazer uma pesquisa na internet para descobrir a história de Alexandra Sousa, também conhecida por Kiki Pais de Sousa, a proprietária da primeira sauna mista do país e uma mulher transexual.

Hoje, o seu caso é público. Hoje, Portugal está na lista dos países europeus que mais asseguram direitos de transexuais. E há uma lei que estabelece o regime da identidade de género, nomeadamente no que respeita ao reconhecimento civil das pessoas intersexo (pessoas que nascem com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não se encaixa na definição típica de sexo feminino ou masculino).

Alexandra tem agora 51 anos. Mas quando ainda era Alexandre, nomeadamente nos seus tempos de criança, altura em descobriu que gostava de bonecas, a realidade era outra. Cedo teve de aprender a lidar consigo, com a sua identidade sexual, e, mais tarde, com a sua identidade de género. “Era filha única – filho, na altura”, conta. “Os meus pais eram pessoas que me amavam muito. Mas havia coisas que eu não verbalizava. Não podia. Como a situação da minha atração sexual, na adolescência, no liceu…”

Durante muitos anos, Alexandra rendeu-se então ao silêncio, um mecanismo de autoproteção, bem como da sua família. “Sofri uma série de problemas em silêncio, que hoje em dia teria denunciado.”

A vontade de poupar a sua mãe, atualmente com 85 anos, era, porém, mais forte. Mas a decisão estava praticamente tomada, ainda que tenha sido concretizada apenas aos 40 anos: “Foi uma decisão amadurecida durante muito tempo e que guardei só para mim”, salienta. “O processo de transição, de adaptação hormonal e de acompanhamento médico requer tempo, e são necessários dois anos para que o corpo se adapte sem grandes choques.”

Durante esse período, visitava com regularidade o psiquiatra, o psicólogo e um endocrinologista para se certificar de que todo o processo se encontrava equilibrado.

Uma das maiores dificuldades era explicar de forma simples um assunto encarado com complexidade. “Na família, apenas duas pessoas estavam a par, e iam informando o resto da família.”

Seguiu-se a cirurgia transformativa. E com ela um novo começo, uma nova vida.

“Estive muito recatada. Evitava muito a exposição pública, porque na verdade ainda não tinha uma imagem verdadeiramente feminina. Eu já tinha uma figura bastante andrógena, mas sem efetivamente fazer a mudança as pessoas não nos leem da forma correta. E isolei-me porque sentia que não estava preparada para abordar o tema.

Eram lançadas algumas perguntas para as quais ainda não me sentia preparada para responder.”

E admite: “Não me arrependo de ter estado em silêncio. Poupou-me muitos dissabores.”

Alexandra é hoje uma interveniente assídua na divulgação de questões LGBTQ+, mais especificamente pela sua experiência enquanto mulher transexual operada. “Logo após a mudança, comecei a dar testemunhos públicos. A minha postura mudou radicalmente. É preciso falar, mudar, transformar a mentalidade das pessoas.”

“É preciso ter força, coragem, determinação. E no final devemos ter orgulho por termos seguido em frente.”

A quem se encontre numa situação semelhante, Alexandra “aconselha a procurar ajuda junto de associações, grupos, pessoas que passam pelo mesmo, pois o silêncio leva à solidão, mesmo que não se esteja, na realidade, sozinho”.

“Gay, paneleiro, chamavam-me. Será que eu era mesmo aquilo?”
Ruben, 35 anos*

“Foi enquanto vítima de bullying que me questionei pela primeira vez. ‘Gay’, ‘bicha’, ‘paneleiro’, chamavam-me. Será que eu era mesmo aquilo?”

Aos 14 anos, Ruben confirmou as suspeitas. Não havia dúvidas: a sua orientação sexual tendia exclusivamente para os seus colegas masculinos. Optou por guardar para si a descoberta e manter-se em silêncio durante anos. Ainda hoje, as suas opções sexuais são tabu − a única solução que encontra para preservar as ‘boas’ relações com uma família marcada pela religiosidade e pelos bons costumes. “Deparo-me com muitos comentários homofóbicos no dia a dia e que surgem nas conversas que tenho com a minha família.” O silêncio é, assim, o seu melhor escudo.

Apenas alguns amigos e dois familiares sabem quem é, na verdade, o Ruben. “As pessoas que sabem que vivo em silêncio são as únicas com quem posso realmente contar, nunca me desiludem”, afirma. Ruben partilha que, com frequência, é incentivado a assumir-se, “para não sofrer mais”. “Dizem-me que vai tudo ficar bem e que haverá uma altura em que realmente serei feliz.”

Quantas vezes, de facto, já se sentiu tentado a bater à porta dos pais e a oferecer a verdade em troca de um abraço apertado? Mas, na ‘hora H’, faltam-lhe as forças. Ruben teme que a Bíblia fale mais alto lá em casa. Sente que atualmente o medo da exposição e as preocupações com a opinião alheia são menores. Mas “cada coisa tem o seu tempo”. E o tempo de Ruben ainda não chegou. Há de chegar o dia em que Ruben se sentirá preparado para “ enfrentar o mundo”. Por enquanto, por detrás de um conformismo aparente, ainda é o silêncio que mais ordena.

*Nome fictício

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