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[aprender não é só coisa de criança]

*Crónica de Pedro Chagas Freitas

Tenho de aprender a não chorar, papá,
a menina senta-se na cadeira,
estica-se toda, muito séria, como se fosse discursar perante a nação como a senhora da televisão,
assim pareço uma mulher grande, não é?,
o pai olha-a, abre o sorriso, as pregas ao lado da boca ficam mais fundas, mais vivas, com mais histórias para contar,
somos as histórias que vivemos, só isso,
e ainda o que fazemos com elas, mais ainda,
assim estou bem, papá?,
ele acena, diz que sim com a cabeça, a menina ajeita-se na cadeira, esboça também ela um sorriso,
no fundo isto até é divertido, é como um jogo, não é, papá?,
as pregas em redor da boca do pai abrem de novo, os olhos fecham e abrem por instantes,
estás bem assim?,
ela responde sem hesitar que sim,
como haveria de não estar se estás aqui, papá?,
chega a senhora que trata daquilo tudo, uma senhora que pouco sorri mas que quando a vê sorri logo,
então como estás hoje?,
um beijo, um afago na mão,
bem, bem, a seguir vamos à livraria buscar o livro que eu tanto quero,
a senhora que sorri pouco abre mais um sorriso,
as pregas do pai, as pregas do pai,
faz de conta que é um brinquedo, sim?,
o segredo é sempre fazer de conta que tudo serve para brincar, as crianças são felizes porque brincam, que complicado será isso de entender?,
hoje vai demorar mais um pouco, ok?,
a menina não se preocupa, está pronta para a brincadeira,
claro que sim, a seguir vou buscar um livro, já lhe tinha dito?,
já, já tinha dito,
às vezes temos de dizer várias vezes alto o que ainda não conseguimos fazer com que nos faça sentir inteiros em silêncio, há palavras que têm de ser ditas, repetidas, até se tornarem palavras de verdade, palavras do mundo,
a mão do pai na mão da filha,
mais um bocadinho e já vamos,
as pregas dele mais abertas e mais fechadas ao mesmo tempo,
o amor abre-nos e fecha-nos ao mesmo tempo, é uma impossibilidade física, uma anti-ciência,
a mão do pai na mão da filha,
ontem a mamã saiu mais cedo, teve de ir a correr para o trabalho, nem se despediu de mim mas depois em casa pediu-me desculpa, mas teve de ser,
o pior da vida é o que tem de ser, aquilo de que pedimos desculpa mas que tem de ser,
o pai liberta um pouco da mão que aperta na sua, depois aperta com mais força,
sim, sim, filha,
mas tu não tens de ir, pois não?, tu vais levar-me à livraria, não vais?,
a senhora que sorri pouco já voltou e traz um sorriso mais cansado,
há sorrisos doridos, sorrisos atormentados, sorriso com superação dentro, sorrisos-heróis, talvez,
já está, já está,
és a maior, filha,
as pregas do pai,
vamos, papá, vamos antes que a livraria feche,
um beijo rápido à senhora que não sorri,
até amanhã,
até amanhã, até amanhã, menina linda,
a menina linda sai a correr como pode, a perna esquerda fraqueja um pouco mas ela prossegue,
há tanto que nos faz fraquejar mas tudo o resto que nos faz prosseguir,
tenho de aprender a não chorar, papá, e hoje não chorei, viste?, viste?,
agarra-se a ele e aperta-o com os braços, com o corpo todo, com ela toda,
as crianças abraçam com elas todas, sem meios-abraços,
tenho de aprender a não chorar, papá,
o pai coloca-lhe a peruca cor-de-rosa que ela escolheu hoje ao sair de casa sobre a cabeça branca, despida, sem cabelo,
olha a careca, olha a careca,
na escola os amigos chamam-lhe assim e ela não leva a mal,
o segredo é não levar a mal o que às vezes é feito para nos fazer mal,
assim não tenho trabalho para me pentear, não é, papá?, não é, mamã?,
olha para o espelho junto à saída enquanto ajeita a peruca extravagante,
ainda bem que hoje trouxe a mais divertida de todas, assim pareço aquela cantora que nós adoramos, não é, papá?,
só tenho de aprender a não chorar aqui, papá,
e eu também, minha filha,
e eu também.

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