João da Silva escreveu o livro "O sofrimento pode esperar"

“E eu agradeço este rim todos os dias”, João da Silva

E eu agradeço este rim todos os dias. E agradeço com todo o respeito pela dor que esta família sente por ter perdido o seu ente querido, tentando sentir um pouco dessa dor em respeito.

Reservo algum tempo todos os dias para refletir ou meditar sobre isto, e tento ser digno desta bênção ao procurar ser uma pessoa melhor todos os dias. Sinto ser esta a única forma de honrar quem me doou vida.

João da Silva, 42 anos. Após três vitórias contra o cancro, foi transplantado a 28 de dezembro de 2017.

Obrigada João pelo testemunho emocionante.

Perdi a conta às vezes que me perguntaram: “vais ter que fazer hemodiálise até quando?». O gesto de encolher os ombros fi-lo tantas vezes quantas ouvi a pergunta, respondendo com um sincero: “até aparecer um rim compatível, talvez uns quatro ou cinco anos”.

Na verdade, não pensava muito nisso, tentava apenas fazer uma vida normal. Não que não me ralasse, nada disso, mas o transplante era para mim uma realidade tão longínqua que preferia não perder um minuto que fosse a pensar nisso. Sempre me apontaram um prazo de quatro ou cinco anos para que acontecesse. Na verdade, aconteceu muito antes. E ninguém está preparado para o telefonema em que ouvimos: “João, pode haver possibilidade de ser transplantado. Está bem de saúde? Quanto tempo demora a chegar aqui?”.

Cerca de três horas depois entrava na ala de transplantação renal do Hospital de Coimbra. Receberam-me de forma calorosa e eu estava acompanhado pela minha namorada, mas senti uma solidão avassaladora perante um território desconhecido, paisagens nunca vistas, o gigantesco abismo do destino.

Cerca de um ano e quatro meses antes deste telefonema, da primeira vez que fui fazer hemodiálise, e quando estava ainda sala de espera, chegou-me aos ouvidos parte de uma conversa entre duas senhoras. Percebi que a certa altura uma delas elevou o tom de voz para eu ouvisse o que dizia: “A hemodiálise é para a gente ir morrendo lentamente”. Rodei a cabeça e olhei-a nos olhos durante alguns segundos, o que a levou a desviar o olhar e a baixar a cabeça, envergonhada.

Optei por ignorar o que ouvira e encarei a hemodiálise como uma nova oportunidade de vida. Sempre que me picavam as veias, repetia para mim próprio “aquilo que combato enfraquece-me, aquilo com que coopero fortalece-me”. Continuei a trabalhar e a treinar, ignorando os avisos para não fazer força com o braço onde tinha a fístula, e não houve um dia em que me tivesse queixado por ter que ir fazer hemodiálise. Aliás, nunca me ocorreu sequer um pensamento do género “que chatice, lá tenho eu que ir para tratamento”. Nunca. Encarei sempre a hemodiálise como uma bênção, como algo que me permitia uma qualidade de vida que tinha vindo a ser diminuída com o agravamento da insuficiência renal. Não me considero especial por ter encarado assim a hemodiálise, conheci dezenas de pessoas que o encaram da mesma forma que eu ou ainda melhor, continuando as suas vidas da mesma forma que faziam antes de terem que se ligar a uma máquina três vezes por semana. Contudo, para cada um desses casos de boa adaptação, posso enunciar outro de má adaptação, de pessoas que desistiram de viver. Sempre que conheci uma dessas pessoas, e procurando ajudar, não me travei de lhe dizer uma frase que li há muitos anos, nem sei onde, mas que recordo sempre que alguma dificuldade surge na minha vida: “há que flutuar no ribeiro da vida como uma cabaça flutua na água”.

A minha insuficiência renal foi uma consequência dos tratamentos para debelar três situações oncológicas que me afetaram e que levaram a que fosse bombardeado com inúmeros ciclos de quimioterapia, bem como dois autotransplantes de medula. Tentei sempre encarar o cancro de uma forma positiva e acredito que os ensinamentos que recolhi dessa fase da minha vida foram fundamentais para a atitude positiva que tive para com a hemodiálise. Acredito que essa atitude levou a que o universo conspirasse a meu favor para me oferecer um rim três dias depois do Natal.

E eu agradeço este rim todos os dias, agradeço a quem perdeu a vida e que graças a isso me proporcionou uma vida melhor. Confesso que chego até a imaginar o homem que me doou o rim. Vejo-o vivo a caminhar até mim e imagino que lhe agradeço de viva voz e que o abraço. Isto pode parecer mórbido ou macabro, mas é o que sinto que devo fazer para agradecer.

E agradeço com todo o respeito pela dor que esta família sente por ter perdido o seu ente querido, tentando sentir um pouco dessa dor em respeito e solidariedade, tendo consciência de que a dor de uma família contribuiu para a melhoria da qualidade de vida de outra. Reservo algum tempo todos os dias para refletir ou meditar sobre isto, e tento ser digno desta bênção ao procurar ser uma pessoa melhor todos os dias. Sinto ser esta a única forma de honrar quem me doou vida.

No sexto dia do internamento depois do transplante, um dia antes de ter alta, ao acordar, senti uma incontrolável vontade de escrever. Não tinha folhas ou caneta e muito menos computador, pelo que me socorri do telemóvel. Abri as notas e comecei a escrever. As palavras ocorriam-me ao pensamento como se alguém as ditasse. Não hesitei, não pensei ou questionei, simplesmente deixei-me levar, escrevendo o mais depressa que podia para não perder uma única das palavras que me chegavam a um ritmo acelerado. Senti que havia algo dentro de mim que eu tinha que partilhar e a forma de o fazer era escrevendo.

Devemos sempre ouvir a nossa voz interior. O resultado desse «ditado» é o texto que vos deixo de seguida.

Era quase noite. Estranhamente, os candeeiros da minha rua estavam todos apagados. Apenas e só os candeeiros da minha rua. Em todos os dias de inverno, os candeeiros da minha rua eram ligados pontualmente às cinco e meia da tarde. Pontos de luz de trinta e três em trinta e três metros, nem mais nem menos um centímetro. Naquele dia, estavam apagados. Cheguei a casa cabisbaixo. A minha mãe recebeu-me com um beijo e, ao perceber a minha telha, perguntou-me o que se passava.

– Os candeeiros da rua estão apagados.

– Devem estar avariados, daqui a pouco já os consertam!

– Não gosto que estejam assim, vê-se mal o caminho…

Fui à janela e cinco segundos depois acenderam-se todos de uma vez. Sorri. A minha mãe tinha razão. Outra vez. Corri para a rua e percorri uma vez para cada lado o caminho dos candeeiros.

Um dia, no segundo ano do secundário, escrevi uma composição sobre os candeeiros da minha rua, em que referi os trinta e três metros de distância entre eles. «Como sabes?», disparou o professor Gaspar.

– Medi.

– Mediste a distância entre os candeeiros?! Para quê?

– Gosto de conhecer o que me ilumina.

O professor sorriu e voltou a focar-se no papel. Ouviu-se um burburinho na sala, entre risinhos e segredinhos. Ao contrário do que era habitual, o professor Gaspar ignorou o rebuliço. Olhei em redor e reparei que todos os colegas olhavam para mim com ar de troça. “És um iluminado!”, ouviu-se, e a plateia rebentou numa sonora gargalhada. Baixei a cabeça e desejei correr para casa, percorrendo a rua iluminada pelos candeeiros que anunciava o regresso ao meu lugar preferido no mundo. O professor Gaspar continuava absorto na minha composição, parecia hipnotizado. Senti-me indefeso perante a chacota geral e ansiei por algo que os fizesse parar. De supetão, o professor pôs-se de pé e a sala desmaiou num silêncio profundo.

– João, quero falar contigo, os outros podem sair.

– Um minuto depois estávamos sozinhos na sala.

– Diz-me, o que procuras?

– Um caminho. O meu caminho. Quero descobrir quem sou. Não quero chegar ao fim da vida sem ser iluminado pelo raio de luz que me dirá quem sou e o que faço aqui.

Dedicado ao Serviço de Urologia e Transplantação Renal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, cuja equipa foi iluminada por esclarecedor raio de luz. Não há dúvida de quem sabem quem são e o que fazem aqui. Muito obrigado por tudo! Bem hajam!

João da Silva, transplantado a 28 de dezembro de 2017

"E eu agradeço este rim todos os dias", João da Silva Joao-1

João da Silva

 

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