À vontade de nunca desistir

O Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO Lisboa) convidou-me a colaborar na Agenda Solidária IPO 2019, que este ano propõe-se a angariar fundos para a construção de um novo Hospital de Dia de oncologia e de hematologia, melhorando as condições do espaço onde os doentes (adultos) fazem quimioterapia em regime de ambulatório.

O tema deste ano é «vamos celebrar»: o IPO faz 95 anos! E desafiaram-me a partilhar uma história da minha vida sobre um momento de celebração.

“À vontade de nunca desistir”. É a história que partilho também convosco (ilustrado pela talentosa Marta Torrão). Por uma boa causa.

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Uma história da minha vida sobre um momento de celebração. Agenda IPO

A minha educação doméstica foi sempre um problema. Tenho uma mãe disciplinadora, com vocação para general prussiano e que me quis transformar na dona de casa perfeita. Este desígnio não correu muito bem e, talvez por isso, a minha mãe vaticinou que eu nunca conseguiria alimentar a minha futura família. Como as fadas encantadas do conto da Bela Adormecida, a minha progenitora lançou um feitiço sobre mim, impedindo-me por muito tempo de ter uma relação feliz com o fogão e as panelas. A profecia cumpriu-se e durante anos fui um desastre na cozinha. Devo admitir, sem pudor ou vergonha, que este insucesso era uma espécie de karma triste que me diminuía e desvalorizava. Convém agora confessar que gosto mais de celebrar as pequenas conquistas do que as vitórias que nos glorificam aos olhos dos outros. A celebração para mim é íntima, raramente tem testemunhas, e é vivida no quase absoluto silêncio. Isto pode parecer uma contradição absurda, dado o meu caráter exuberante e a minha voz estridente, mas os pequenos feitos, tal como as histórias mais simples, são aqueles que mais me comovem.

Muitos anos mais tarde, fui apresentadora de um programa de televisão que se tornou um enorme sucesso. No dia da estreia, um domingo glorioso, resolvi acalmar a ansiedade da tarefa profissional e entrei na cozinha decidida. Era o dia em que eu tinha que provar a minha maturidade doméstica. Cheia de dúvidas e muito a medo, fiz o meu primeiro empadão. Imagine-se, como é que um prato tão simples podia meter tanto medo? Enquanto andei às voltas com o puré de batata, a carne e o resto dos ingredientes, fiz uma viagem à minha adolescência para me interrogar como é que me tinha deixado aprisionar pelas palavras da minha mãe e como provavelmente me deixei aprisionar pelo juízo de muitas outras pessoas ao longo da vida. A noite ia ser difícil e desafiante, mas a minha batalha contra as minhas imperfeições acabava de ser colocada no forno para ser terminada depois pelo meu marido, quando eu estivesse nas minhas funções profissionais.

Fui para o estúdio cedo, seguiram-se horas de ensaios, marcações, discussões e finalmente o momento da verdade. Foi uma noite profissionalmente épica. Quando terminamos a emissão, a alegria era generalizada, o tumulto da missão cumprida e ultrapassada era avassalador. No meio desta festa, por incrível que pareça, eu só me queria ir embora. E quando, finalmente, consegui chegar ao carro onde o meu marido me esperava, não respondi à pergunta óbvia que ele me fazia sobre o resultado da emissão. Abri a porta do carro e com ansiedade perguntei:

– “O empadão estava bom?”

E só quando ele confirmou que estava muito bom e que tinha que o repetir em breve, é que permiti esvaziar a minha tensão e celebrei, com um choro feliz, a vitória sobre as minhas incapacidades. O ruído do estúdio ficou para trás e, chegada a casa, estive feliz a celebrar sozinha, um tabuleiro de empadão vazio.

Este momento tão banal para a maioria das pessoas é para mim um marco definidor do meu crescimento. Sempre que me lembro de algo que me fez muito feliz, acabo por ir parar àquele tabuleiro e àquela noite. Nunca deixem que vos digam de que não são capazes de fazer o que quer que seja. Por isso, celebro aqui a esperança e a vontade de nunca desistir. Cumpri o meu desejo mais íntimo e hoje sou uma grande cozinheira.

 

Nos 95 anos do IPO, além de mim, Alice Vieira, António Barreto, Carlos Fiolhais, Cristina Ferreira, Eduarda Abbondanza, Fernando Santos, José Gameiro, Laurinda Alves, Luís Marques Mendes, Maria Antónia de Almeida Santos e Pedro Abrunhosa são as 12 personalidades que este ano foram convidadas a escrever uma história sobre um acontecimento das suas vidas que fazem questão de celebrar!

 

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