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Crónica da Má Língua, por Júlia Pinheiro

Cristina Ferreira não foi a primeira profissional de televisão a revelar as dificuldades de quem sofre a pressão do assédio sexual na sua vida laboral.

Num outro livro, publicado há dois anos, Elisa Domingues tinha o mesmo desabafo, recordando factos ocorridos na RTP numa época não especificada.

O eco destas declarações foi abafado pelo ruído de outras notícias e poucos se interessaram sobre o que se passava numa empresa pública quanto a esta matéria. As afirmações de Cristina Ferreira desencadearam outro tipo de forças e reações. E, estranhamente, muitas pessoas aproveitaram a oportunidade para a criticar nas redes sociais, insultando e fazendo insinuações sobre o caráter e o comportamento de uma mulher que se portou de forma irrepreensível neste incidente. O assédio sexual tem moldura penal e é um crime grave. Configura o comportamento abusivo por parte de superior hierárquico sobre uma subordinada ou subordinado e causa um stress infindável na vítima.

Não falo por experiência própria. Nunca fui alvo de assédio. Sou a mulher afortunada que sempre trabalhou com homens e mulheres que me respeitaram como mulher e como profissional. Mas isto não é o mesmo que dizer que não vi coisas desta natureza acontecerem perto de mim. E não vale a pena ser hipócrita. Estes crimes acontecem em todos os setores laborais, da banca às escolas, administração pública, hospitais, empresariado e tantos outros quadrantes nos quais existe a convivência dos dois sexos. Na televisão, tem outro sabor. Claro, eu compreendo. Somos pessoas que se expõem, mostramos o corpo, trabalhamos a comunicação como uma forma de proximidade, que alguns confundem com sedução. No caso das mulheres, tudo se complica. A afabilidade é confundida com disponibilidade, a simpatia com a certeza de que estamos dispostas a passar outras fronteiras. O gesto que se coloca num braço ou num ombro é um convite implícito, a aliança no dedo não nos protege. Nem a afirmação inequívoca de que não estamos interessadas. E, mesmo assim, as complicações podem surgir.

No caso da Cristina Ferreira, estou perfeitamente à vontade para exprimir a minha opinião. E sei que o seu comportamento nunca se pautou pela duplicidade ou pela sugestão de um flirt que poderia correr bem. Sei o que lhe fizeram e o que ela fez. Dada a delicadeza da situação, Manuel Luís Goucha, um cavalheiro ímpar, fez as primeiras revelações. Com a discrição que o caracteriza e perfeitamente consciente da gravidade dos factos. E, por fim, Cristina Ferreira contou o que se estava a passar, pediu ajuda, sentou-se comigo e com outros dirigentes da empresa para a qual trabalhávamos e gizámos uma estratégia. Protegemos a vítima e alertámos o agressor. Como é típico nestes casos, a resposta foi ambígua e defensiva. Um exagero, uma má análise dos factos, uma brincadeira que não tinha sido entendida. Mas aconteceu e teria prosseguido se por acaso a pessoa em questão permanecesse por perto. Muitas mulheres não têm tanta sorte. Os seus interlocutores desvalorizam ou tendem a ignorar as ocorrências. Cristina Ferreira respirou de alívio e prosseguiu o seu caminho. Por outro lado, não foi tão bafejada pelo destino quando alguns órgãos de comunicação noticiaram estes incidentes e ilustraram a notícia com fotografias desta profissional em produções de moda com decotes, tecidos transparentes ou saias curtas. De forma sub-reptícia, validam o crime, servem para firmar que a sua escolha de vestuário era um convite. ‘Estava mesmo a pedi-las’… é esta a mensagem oculta. Repugnante e triste.

A atração sexual entre pessoas que trabalham no mesmo local é tão velha como o mundo. Disso já posso falar. Namorei e casei-me com um colega de trabalho. Mas, desde a minha mais tenra juventude, nunca deixei que o meu corpo fosse alvo de gula, de comentários ou de insinuações. A clareza e a confrontação desanuviam o ambiente. Só fui traída pelos acontecimentos uma vez e foram as circunstâncias que ditaram a ofensa. Uma noite alguém se deixou ficar para trás num palco para poder desfrutar do momento em que eu trocava de roupa. E assim fiquei exposta, quase desnudada, sentindo aquele olhar sobre mim e sem me poder defender. Até hoje, guardo esse momento como uma violação sem sentido… E quando procurei explicações foi-me dito que eu tinha visto mal… Existem homens desprovidos de qualquer sentido de honra ou de cavalheirismo. Eu não sabia, mas estava a falar com uma amiba. Sem código moral ou vida interior. Espero que nunca ninguém se comporte assim com nenhuma das suas filhas…

 

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