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“Há na mentira um lado humanitário, uma espécie de piedade cobarde”

Crónica de  Pedro Chagas Freitas

“Mente-se para combater a indiferença, para que uma espécie de barulho de nós se faça ouvir no outro. Mente-se por uma forma de desespero, mas nada do que não queremos desesperadamente merece um segundo gasto”, disse-lhe ele, a voz fechada pelo medo do que aí vem.

Todas as vozes são o que não conseguem dizer: em todas as vozes há mais o que não tiveste coragem de dizer do que aquilo que realmente dizes. Só fica na voz o que sobra do confronto entre a coragem e o medo, entre o que não pode ser e o que tem de ser. O amor é também isso: o que sobra do embate, tantas vezes violento, entre o que não pode ser e o que tem de ser.

“Há na mentira um lado humanitário, uma espécie de piedade cobarde”,

acrescentou ela, os braços já ao redor do pescoço dele, a cabeça pousada no centro do peito, à espera de um conforto temporário – como todos os confortos são temporários, e ainda bem.

O conforto é a tentação preguiçosa, a tentação perigosa: só devíamos temer o que nos faz parar, nunca o que nos faz mexer.

“A infelicidade é olhar para o que não temos, só isso”, foi o que lhe apeteceu dizer, ela ouviu porque ele disse-o mesmo, continuam parados no meio um do outro, fazer amor é isto, o resto é prazer.

“O infeliz é aquela criatura que olha apenas para o que não tem; e pode ter tanto, pode ter tudo, mas se olhar para o tanto que inevitavelmente não tem vai ter sempre tão pouco para lhe saciar o que quer. O feliz é aquele que olha sobretudo para o que tem, e nem assim deixa de querer mais do que aquilo que tem. Há, entre o feliz e o infeliz, uma diferença fundamental: a capacidade de mentir com qualidade a si mesmo. Sem mentira de qualidade não há felicidade de qualidade, verdade seja dita. Precisamos de mentiras que nos sustenham, que nos agarrem, e é apenas assim que criamos, dia a dia, na sapa, na brega, a nossa verdade. Há mentiras que não são pecado, só amor.”

A resposta dela deixou um estranho silêncio no ar, um silêncio que seria doloroso se estivéssemos perante duas pessoas que olhassem para o que não têm; felizmente não é esse o caso, e este silêncio serviu apenas para eles se amarem melhor – e ironicamente de forma mais ruidosa. Bem ruidosa, por sinal. Estaríamos a mentir se não disséssemos que estamos com uma pitada – um pedaço bem grande, na realidade – de inveja.

Deixemo-los em paz.

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