A Voz Feminina_Sílvia Baptista

Non de plume

Crónica de Sílvia Baptista, escritora

Nasci numa tradicional família patriarcal, gente das Beiras, de alma prosaica e coração gentil. Os almoços de domingo, eventos onde o amor uns pelos outros se exaltava na quantidade de comida que enchia o prato, eram paradigmáticos. As mulheres sentavam-se de um lado e os homens do outro, elas cozinhavam, eles jogavam às cartas, os pais ganhavam o dinheiro e as mães cuidavam dos filhos. Na minha família era assim. Não é que as mulheres não tivessem o que dizer, o problema não era falta de verbo, era falta de voz. O problema não era falta de vontade, era falta de saber que tinham um lugar além do que lhe fora imposto. O problema não era o conteúdo, era a liberdade de poder viver de forma sonora, audível.

E eu fui crescendo nesta família de gente boa, na qual a voz das mulheres era a voz da maternidade, do lar, do doméstico. Esta experiência familiar, de claro domínio masculino, foi uma experiência valiosíssima. Talvez o mundo tenha perdido uma fada do lar, mas o meu mundo ganhou som. E ganhando som ganhou relevância.

Matei a sede às dúvidas de crescimento recorrendo ao que nunca me falha: aos livros. E dei-me conta de que o mundo não era só feito de homens que jogavam às cartas nem de mulheres que lavavam a louça, que também era habitado por mulheres que liam, que escreviam, que pensavam, de mulheres que tinham voz. Marguerite Yourcenar, George Sand, Doris Lessing, todas escaparam ao determinismo doméstico, numa altura em se esperava delas pouco mais que o silêncio.

E por isso me entristece que ainda hoje existam mulheres que não têm voz. Justamente porque nunca como agora essa possibilidade nos foi dada tão claramente. Onde está a massa crítica de mulheres que estuda, se prepara, trabalha? Temo que esteja onde sempre vi as mulheres lá de casa: a tratar, com elevada competência, das urgências dos outros. Nem sempre em silêncio, mas quase nunca com voz.

Quando falamos, quando optamos por não ficar em silêncio, há sempre sons que insistem em ser mais audíveis, que nos denigrem e ofendem, mas é nessas alturas, justamente nesses momentos, que, se não nos calarmos, se formos corajosas, percebemos que, mais arriscado do que não ter uma voz, é não dizer nada.

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