Cheias 1967: “Nunca esquecerei as imagens dos corpos a flutuar na água”, Carlos Paço, 17 anos na altura

Carlos Paço, hoje vice-presidente do Centro Paroquial de Santa Catarina, Lisboa, tinha 17 anos na altura das Cheias 1967. Era o chefe do grupo de escuteiros de Santa Catarina que foi ajudar na Urmeira, Loures.

Se há coisas que o tempo apaga, há outras que a memória teima em não esquecer. Como a chamada que Carlos recebeu na manhã do dia 26 de novembro. Do outro lado, estava o Chefe Oliveira, da Junta Regional dos escuteiros. Pedia-lhe que organizasse um grupo de voluntários para ir ajudar a população afetada pelo mau tempo da noite anterior. Num curto espaço de tempo, Carlos reuniu entre oito a 10 escuteiros, “os mais velhos do agrupamento de Santa Catarina”, lembra. A mãe, preocupada, disse-lhe: “vai filho, mas e se te acontece alguma coisa?”.

Carlos, que frequentava o sétimo ano do liceu Passos Manuel e estava prestes a completar 18 anos, foi rápido e direto na resposta: “tenho que ir”.

O grupo de voluntários encontrou-se então na sede regional, na zona do Chiado, onde uma carrinha de caixa aberta da Cruz Vermelha os transportaria à Urmeira (Odivelas), um dos locais mais fustigados pelas cheias. Antes de partirem, Carlos recorda que se abasteceram de material como picaretas, enxadas, pás, vassouras.

“Quando lá chegamos, o cenário era devastador.

A zona, completamente inundada, parecia o rio Tejo. Sofás, frigoríficos, camas, colchões, cadáveres de animais e, o mais temido, corpos de pessoas flutuavam nas águas. Se há imagens que não consegue esquecer, estas são, certamente, algumas delas.

À chegada foram divididos em equipas. Carlos ficou integrado na de escuteiros, sendo que outros grupos foram formados, com bombeiros e estudantes universitários. “Todos os voluntários tiveram de ser vacinados contra o tétano”, lembra.

A missão do grupo de escuteiros de Santa Catarina durou três dias. No primeiro dia, tanto ajudaram a remover os destroços, lixo e cadáveres de animais (nomeadamente galinhas) causados pelas chuvas torrenciais, como procuraram levar as pessoas para locais onde estivessem em segurança. Aos bombeiros cabia recolher os corpos das vítimas… Carlos não o fez. Mas assistiu, e as imagens continuam bem nítidas.

Nos dois dias seguintes, o trabalho foi orientado para a recolha e distribuição de bens e alimentos. Carlos conta que as cheias desencadearam um movimento de solidariedade. Para além dos estudantes universitários e outros voluntários que ajudaram no terreno, houve quem doasse comida, roupa e outros bens. A sua equipa ficou encarregue de recolher e armazenar essas doações em armazéns da zona e, posteriormente, de distribuí-las às vítimas da tragédia.

Depois das chuvas torrenciais e devastadoras, veio um sol brilhante e calor. E também o cheiro fétido do entulho dos destroços e dos corpos de pessoas e animais em decomposição. E lama, muita lama. “Eu lembro-me de, mesmo com galochas calçadas, ficarmos enterrados a cada passo,  aproximadamente até meio da bota”. 

Foi a missão mais dura de sempre. Quando tudo terminou, ficou, por um lado, o orgulho de ter ajudado quem naquela altura mais precisava, por outro, a frustração e tristeza por toda a tragédia.

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