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Crónica de Natal, por Pedro Chagas Freitas

Por Pedro Chagas Freitas

Sabia que era Natal porque tu tinhas chegado. Trazias a roupa de sempre, a emoção de sempre, a voz embargada de sempre, a cara cansada de sempre. Mas eras tu.

Às vezes basta ser aquela pessoa para tudo o resto ser irrelevante.

Sabia que era Natal porque quando era Natal sorrias assim, aquele sorriso com saudade dentro — não a que está a ser mas a que vai ser. A saudade que nos mói mais é a que ainda não chegou mas que sabemos que vai chegar.

O que dói mais é sempre a possibilidade de que algo que doa aconteça.

Sabia que era Natal porque te sentaste no teu lugar à mesa, à cabeceira, e começaste a contar as tuas histórias que nunca saberei nem quero saber se são verdadeiras se são falsas, em que és o herói e os outros os vilões — desta vez falaste num naufrágio qualquer da tua embarcação, disseste que tiraste a licença para seres comandante e que agora diriges navios gigantes por mares gigantes e terríveis.

Nenhuma verdade tem o direito de estragar uma mentira que traz felicidade e que não tem mal nenhum. O amor nunca tem mal nenhum, que nunca ninguém se esqueça disso.

Sabia que era Natal porque a mãe chorava sem parar enquanto cortava e comia o bacalhau, a mana grande olhava-te como se olhasse o fim do mundo, e eu tentava brincar, eu tento sempre brincar, com tudo aquilo e contigo — sim, que tu estás sempre pronto para a brincadeira, e é também por isso que é Natal.

É Natal sempre que estamos prontos para a brincadeira.

Sabia que era Natal porque exatamente quatro minutos depois da meia noite bateram à porta e era um senhor, com um ar sério e intimidatório, para tu ires com ele ao tal jantar que desde que me lembro de ser gente fazem entre amigos neste dia e sempre a esta exata hora, nem mais um minuto nem menos um minuto.

Todas as decisões têm de ser tomadas na hora certa, nem um minuto a mais nem um minuto a menos.

Sabia que era Natal porque desde aquele dia nunca mais te vi, desde que me disseste que ias continuar a morar no outro lado do mundo, pelo menos enquanto não estavas em alto mar, e que lamentavas muito mas tinha de ser, um pai às vezes tem de trabalhar longe do filho, e eu compreendi. Só não compreendi bem quando me disseste que moravas num último andar com vista para o mar. Hoje, quando te fui ver de surpresa, percebi que de facto estavas no último andar mas que não tinhas vista para o mar. Aliás, naquele prédio só o gabinete do diretor e uma parte do gabinete dos guardas prisionais é que tem, ficas a saber. Não voltes a mentir-me assim, está bem, pai?

 

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